sábado, 15 de abril de 2017

Oportunidade perdida



O escritor William Faulkner, notoriamente um homem bem-sucedido na vida, como um dos maiores clássicos da literatura norte-americana e mundial, tinha uma tese bem peculiar acerca do sucesso. Afirmava que se tratava de um "matador" da criatividade, dessa ânsia de perfeição que todas as pessoas devem ter, seja qual for a sua atividade, até o último instante da existência.

O italiano Alberto Morávia expressou a mesma idéia, em tempos recentes. Estariam ambos com a razão? Os fracassados seriam os verdadeiros gênios das artes e das ciências? Seriam os chamados donos da verdade? Enxergariam aquilo que eventualmente ninguém mais vê? Claro que não! E nem os dois escritores fizeram qualquer apologia do fracasso.

Ambos quiseram, apenas, alertar sobre a tendência que todos temos à acomodação, a "dormir sobre os louros" conquistados. Afinal, o satisfeito consigo próprio é, na verdade, um derrotado. Ademais, não foram apenas William Faulkner e Alberto Morávia que escreveram a respeito. Ressalte-se que é voz corrente que o sucesso transforma para pior as pessoas. Que os bem-sucedidos se tornam arrogantes, prepotentes e indiferentes. Em alguns casos, isso, de fato, ocorre, mas está longe de ser a regra. É mera exceção.

Quem age assim, é bem-sucedido por pouco tempo. Não tarda para que despenque da sua arrogância. Seu sucesso é parcial e transitório. O fracassado, sim, é perigoso. Alimenta antagonismos, mágoas e ressentimentos e busca derrubar todos que vê pela frente. Por isso, sou levado a concordar (em parte) com Sommerset Maugham, quando constata: “A idéia de que o sucesso deteriora as pessoas, fazendo-as vaidosas, egoístas e complacentes consigo próprias é errônea. Ao contrário, para a maioria delas, torna-as modestas, tolerantes e gentis. O fracasso é que faz as pessoas cruéis e amargas”.

Mas... nem tanto ao céu e nem tanto à terra. Há sucessos e sucessos, assim como há fracassos e fracassos. Tudo é muito sutil, muito vago, muito tênue. Não raro achamos que fomos bem-sucedidos em alguma empreitada quando, na verdade, fracassamos, e vice-versa. Só o tempo pode dizer quando obtivemos uma coisa ou outra.

O tema vem a propósito de uma situação que ocorreu comigo há exatos 56 anos. Eu atravessava, na época, uma fase de intensa criatividade, que nunca mais se repetiu com a mesma intensidade. Fazia dois anos que trabalhava numa emissora de rádio do ABC e já havia conquistado um troféu de “locutor revelação” da região.

Simultaneamente, dava meus primeiros passos no jornalismo, em um pequeno jornal de Santo André, como repórter (dois anos, portanto, antes de me tornar editor, função que exerço até hoje) e meus textos eram muito elogiados pela chefia. Posso dizer que estava no auge do sucesso (pelo menos do que eu entendia que ele fosse).

Foi quando conheci o músico e compositor Edmar Fenício. O sujeito sabia tudo de violão, do clássico ao popular. Compunha músicas e mais músicas, que se limitava a mostrar aos amigos, e nunca pensou em procurar um bom cantor que as gravasse. Foi quando caíram-lhe nas mãos alguns poemas meus que, pelo visto, o encantaram. Ele pediu licença para musicá-los e eu, mais por curiosidade do que outra coisa, concordei. O resultado foi espetacular.

Ele passou a cantar essas nossas composições num bar da Rua Santa Catarina, em São Caetano do Sul, onde nos reuníamos, todas as sextas-feiras, para ouvir boa música, jogar conversa fora e tentar “salvar o mundo”, já que nosso grupo contava com poetas, jornalistas, advogados, sociólogos etc., alguns muito bem-sucedidos na vida mais tarde e cujos nomes prefiro não declinar. Não sei se eles gostariam de lembrar daqueles tempos loucos de juventude, anteriores ao golpe de 1964.

Na ocasião, a Bossa Nova estava no auge. Edmar, mágico do violão, reproduzia a caráter a célebre batida descoberta por João Gilberto, que deu origem a esse movimento musical que revolucionou a MPB. Num determinado dia, entre uma bebida e outra, ambos já um tanto “pra lá de Marrakesh”, o compositor convidou-me para ser seu parceiro fixo. Topei na hora. Compusemos, sem favor algum, em torno de 50 sambas, que me pareceram excepcionais.

Como o Edmar era o músico, deixei com ele todas as letras, para que as colocasse no pentagrama. Não guardei uma única comigo. Claro que foi uma imensa bobagem da minha parte. Ademais, meu ilustre amigo vivia me prometendo que “qualquer dia”, iria me dar cópias do calhamaço de composições que tínhamos elaborado em conjunto. Foi mais longe: disse que me daria uma fita, com todas as nossas músicas devidamente interpretadas por um cantor, nosso amigo.

Naquele tempo, os gravadores não eram nem sombra dos de hoje. Tinham, sem nenhum exagero, as dimensões de uma enorme mala de viagens, com dois rolos enormes. Não dava para ficar levando de um lado para o outro, aquele trambolho. Eu tinha o meu, se não me engano da marca “RCA Victor”. Esperei, esperei e esperei que o Edmar cumprisse a promessa, e nada. A bem da verdade, espero até hoje.

Subitamente, a vida nos separou. Cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais nos encontramos. Sei que meu amigo compositor não se apropriou das nossas composições para fins comerciais. O cara podia ser tudo, menos desonesto. Afinal, nunca ouvi, em lugar ou tempo algum, as músicas que fizemos juntos. Como ele era um sujeito bagunçado (como a maioria dos gênios), certamente perdeu aquelas preciosidades, que poderiam nos render fama e, quem sabe (embora ache um tanto duvidoso) fortuna.

Aquelas tantas e tantas letras, brotadas da minha mais refinada inspiração, perderam-se para sempre. É como se jamais tivessem existido. A bem da verdade, eu não ficava nada a dever ao Edmar em termos de desorganização. Quando digo isso, as pessoas que trabalham comigo, notadamente meus subordinados, não acreditam.

Ocorre que, com o treinamento proporcionado pela função de editor, descambei de um extremo ao outro. De um sujeito totalmente desorganizado, tornei-me uma pessoa meticulosa em excesso, dessas que causam irritação nos colegas que não conseguem se organizar. Coloquei, até, na minha ilha de edição da redação, este lembrete, que os repórteres detestavam: “Da desordem das coisas, vem a desordem das idéias”.

Todavia é tarde para me organizar. Perdi, por não ser organizado (um pouquinho que fosse), entre outras coisas, a oportunidade de me projetar na MPB. Exagero? Quem sabe! Não que eu fosse um Vinicius de Moraes ou um Chico Buarque, longe disso. Mas até que as minhas letras (e sobretudo as músicas do Edmar), não só davam para o gasto, como iam (sem falsa modéstia) um pouco além disso.

Nunca mais me meti a dar uma de compositor. Nem por isso, no entanto, o “fracasso” (se é que a experiência possa ser rigorosamente classificada dessa forma) deixou-me amargo e cruel, como previu Sommerset Maugham. Talvez tenha deixado, apenas, um tantinho frustrado, o que é normal, não é mesmo paciente leitor? Acaso você não ficaria, se estivesse em meu lugar?


Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. O possível sucesso virou fumaça, assim como seu amigo EDMAR FENÍCIO. Nunca mais notícias dele. Que coisa!

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