sexta-feira, 21 de abril de 2017

Salomé


* Por Martins Fontes


Ora, em Maqueros, perto da
Terra sagrada de Judá,
Num dia do mês de Shebat*,

O tetrarca da Galileia,
Filho de Herodes da Idumeia,
Reúne em magnífica assembleia,


Vitélio e vários dentre os seus
Homens e amigos galileus,
E os sacerdotes do seu Deus,


E honra o procônsul dos romanos,
Dando um banquete aos soberanos,
No dia egrégio dos seus anos.


A sala imensa do festim
É toda feita de algumim
Tauxiado de ouro e de marfim.


A mesa augusta ergue-se ao lado,
E assenta sobre um largo estrado,
Que é de sicômoro lavrado.


Turbando as chamas e os metais,
Sobem as fúmeas espirais
Dos incensários aromais.


Brilham os sifos dos convivas
E altas crisendetas* festivas
Cheias de figos e de olivas.


Veem-se amêndoas de Belém.
E as áureas ânforas contêm
Os vinhos róseos de Siquém.


Pela extensão da mesa nobre,
Por entre palmas, se descobre
A neve em cíatos de cobre.


Servem-se polmes de açafrol,
Romãs e tâmaras de Escol,
Bolos de melro e rouxinol.


Em cismas lúgubres absorto,
Antipas vê, de longe, o porto
Tranquilo e triste do mar Morto.


E o seu cismar enche-se de
Sombras horríficas, porque
A morte próxima prevê.


Contudo, às vezes conversando,
Disfarça as mágoas; porém, quando
Vai o banquete terminando,


O velário de um pavilhão
Se abre: Herodes no salão
Surge entre anêmonas, então.


E erguendo a pátera florida,
Diante da sala comovida,
Declama: “A César, longa vida!”


É nesse instante triunfal,
Exatamente no final
Do ágape esplêndido e fatal,


Que, do fundo das galerias,
Num incêndio de pedrarias,
Desponta a filha de Herodias.


E ao som de mandora e quinor,
Num flavescente resplendor
De gemas de Sirinagor,


Entre os aplausos do delírio,
Virgem e leve como um lírio,
Entra dançando ao modo assírio.


Fascinadora, Salomé
Levanta o véu, que desce até
À asa recurva do seu pé.


E em torcicolos coleantes,
E na volúpia das bacantes,
Tine as crotálias ressoantes.


Ri-se, e na dança tem o dom
De deslumbrar, variando com
A ondulação de cada som.


Gira em volteios colubrinos*,
Lentos, elásticos, felinos,
Ao retumbar dos tamborinos.


Em tentadora inebriez,
Mostra a morena calidez
Doirada e bíblica da tez.


Chega-se a Antipas, e recua…
Ascende aos poucos, e flutua,
Maravilhosa e seminua…


Avança e foge, e vem e vai,
Ondula, e ala-se, e recai
Em posição de quem atrai…


Seu corpo nimba-se envolvido
Por um translúcido tecido,
Que é como um fluido colorido.


No desvario que a seduz,
As mil imagens reproduz
Da flor, dos pássaros, da luz!


Arfam na graça dos coleios,
Nos redopios e meneios,
Os pomos pulcros dos seus seios…


Ante o seu mágico poder,
Diz-lhe o tetrarca sem conter
O entusiasmo do prazer:


– “Pede-me tudo o que quiseres!
Qual a província que preferes,
Flor luminosa entre as mulheres?”


– “Tu és tão bela que nenhum
Prêmio te paga! E só por um
Beijo, eu te dou Cafarnaum!”


E ela, infantil, em voz que freme,
Assim lhe diz: “Dá-me em estreme…”
Murmura um nome… E Herodes treme!


Pede que não, e exora… Mas
A sala ordena pertinaz:
– “Tu prometeste – e tu darás!”


Depois, num grande prato de ouro,
Entre as aclamações em coro,
Com os olhos úmidos de choro,


Nas mãos de um fâmulo idumeu,
Diante do povo galileu,
De Iocanã* apareceu,


Bruta, a cabeça ensanguentada,
Que, pelo gume de uma espada,
Fora do tronco separada.


Da sua pálpebra, a fulgir
Como uma hidrófana de Ofir,
Vê-se uma lágrima cair…


Ante essa lágrima tristonha,
Herodes julga a voz medonha
Ainda escuta, como quem sonha…


Ouve dizer-lhe Iocanã!
– “Tetrarca impuro, a vida é vã,
E a tua amante é tua irmã!”


Serena, a lágrima resvala,
Tremula e cai. E toda a sala,
Cheia de espanto e horror, se cala.


Mas Salomé, flor de Engadi,
Ao Precursor, num frenesi,
Diz: “Por que choras?” E sorri.


E ele responde: – “A causa desta
Última lágrima funesta,
É ter chegado tarde à festa…


Pois me fizeste, a meu pesar,
Por tanto tempo demorar,
Que não te pude ver dançar…”


In: MARTINS FONTES, José. Verão. 4ª edição, comemorativa do centenário de nascimento do autor. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 92-97.



* Médico, poeta e tradutor.

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