sexta-feira, 28 de abril de 2017

Machado de Assis


* Por Carlos de Laet

Desejara não escrever sobre o caro morto. Outros já o têm feito. Outros ainda o farão melhor. Em sua glória, aliás, e definitiva colocação no panteon literário, nada pode influir o meu juízo nestas páginas efêmeras da imprensa, amanhã já dispersas, e que com razão têm sido comparadas aos antigos oráculos de Dodona, lançados em folhas de carvalho, com pretensões a dirigirem os povos, e logo tomadas pelo vento e por ele arrastadas ao limbo do olvido. Mas ninguém faz como quer. Insensivelmente se me volve o espírito para a câmara ardente onde no seu esquife enflorado se embarca o velho amigo, caminho da eternidade.

Eu não ignorava que Machado de Assis estava enfermo; e só me admirava a resistência daquele débil organismo, quando bem a cheio no coração o sabia ferido, desde que de súbito o colheu a irreparável desgraça a perda da mulher, em quem mais do que em nenhuma cabia o doce epíteto de consorte.

Dolorido ainda não há muito o víamos aí pela rua, ou na Livraria Garnier; mas singularmente se enganava quem o supunha vivo. Nem sempre se agoniza no leito. Agonia é luta, luta com a morte, que afinal sempre entoa o canto de vitória. O pobre Machado agonizava de pé, e ocultando na sua impassibilidade de moderno estoico os tremendos combates que lá por dentro se lhe travavam.

Quando quem escreve estas linhas começou a entender de literatura, já o nome de Machado de Assis era apontado como o de exímio cultor das letras. Sua obra poética, primeiro ensaiada em jornais e revistas, ia tomando vulto e formava volumes. Suas crônicas, seus contos, suas novelas repetidamente acusavam o lavor de um artista da palavra. De vez em quando apareciam no teatro algumas das suas tentativas dramáticas, e todas deixavam a impressão de um talento mesurado, e eurrítmico, isto é, que por principal mérito de forma houvesse o sentimento de comedido e decoroso, no sentido em que o tomava a estética dos clássicos.

Porque ele o era, um clássico verdadeiro, no tocante à forma, no minucioso estudo da língua, e no escrupuloso cuidado com que se apartava de quanto se lhe afigurasse dissonância.

Espírito assim conformado, claro está que não se podia alar em grandes surtos aos extremos em que por vezes o rigor da crítica apanha os geniais desvairos de um Shakespeare no drama, de Hugo no tentame lírico, ou de Hoffmann no conto. O famoso ne quid nimis (“nada em demasia”) achou no glorioso extinto impecável observante. Sabe-se que os termômetros comuns podem marcar desde os grandes frios, mais gélidos ainda que o próprio gelo, até a cálida temperatura em que a água se faz vapor; mas; por perfeita que seja a graduação, só aproximativas se revelam as indicações do instrumento. Nos extremos, então, muito é possível errar a observação termométrica. Quando, porém, para as temperaturas médias, dos aposentos ou dos corpos humanos, a coluna está preparada de modo que só funciona entre próximos limites, não é difícil apanhar com justeza diferenças mínimas, em décimos de grau. O termômetro estético do nosso Machado era um desses aparelhos de precisão, impróprios para as temperaturas violentas das paixões, mas admiravelmente calibrado para indicar e traduzir, com máxima exação, toda a gama das modalidades físicas entre dados limites, que aliás são os comuns na vida social.

A religião e a política, eis as duas causas por que mais se apaixonam os homens; e nunca ninguém as viu discutir pelo extinto chefe literário. É que isso, e com razão, lhe parecia uma luta, e ele absolutamente não se propunha lutar. Seu campo de ação ele o delimitara na expressão dos afetos brandos ou na crítica impessoal dos costumes crítica em que jamais se demasiava, não direi até a ferroada, porém mesmo até a picada de alfinete. As personagens mais ridículas e censuráveis, nos contos e escritos de Machado, nunca tanto o são que deixem de ser socialmente aceitáveis. Se fora a charge uma “publicação a pedido”, nenhum dos criticados acharia motivo para um processo por injúria.

Temperamentos assim tímidos e moderados não é raro que descaiam na fraqueza ou pusilanimidade; mas tal não sucedia com o nosso querido morto. Sua eurritmia (peço licença de voltar ao termo tão bem feito para dizer a minha ideia); a sua eurritmia estética prolongava-se no terreno moral. Incapaz de censurar com veemência um abuso, ele também o era de baixar à lisonja. Em suas relações oficiais sabia guardar conveniências, mas não se vergava a elas. Impoluto, impoluível no tocante a interesses pecuniários, tão absurdo lhe fora um conchavo, uma culposa complacência, quanto um solecismo ou uma vulgaridade estilística. Sabe-se que o arminho tem à lama horror instintivo, asseio que se exagera contando-se que, se acaso se mancha, logo morre de nojo. Daí aqueles altivos brasões dos Rohan, da Bretanha, onde figura o arminho com a legenda Potius mori quam foedari. Antes morrer que manchar-me! Soberbo lema de fidalgos; e que sem deslize da verdade também se pudera por sobre a lápide deste honrado homem do povo, tão fidalgo, ele também, na imaculável probidade.

Modesto nas suas origens, porque começou a trabalhar como simples operário tipógrafo, ele cresceu até às alturas em que o vimos, não por um desses abalos sísmicos com que frequentes emergem celebridades, como no Oceano Pacífico se improvisam ilhas; e antes a compararíamos, a fama literária do extinto amigo, àquelas outras formações madrepóricas, que lentas e lentas se vão erguendo do abismo, pelo trabalho acumulado de muitos anos. O que fora recife, alteia-se finalmente exornado de plantas, que um dia serão árvores, desatando-se em flores e frutos de bênção.

Quando se fez a Academia de Letras, realizada em meio da República essa criação aristocrática, ante a qual tinha recuado a democracia zombeteira do Império, se um por um se tomassem os votos para a escolha do chefe, creio que ninguém discreparia na escolha de Machado. Simpático aos mais velhos, porque com eles tinha vivido, ou de pouco os precedera; bem querido dos novos, para quem sempre usava de benevolência, escusando senões e propiciando tentativas Machado foi o cabeça unanimemente aceito pela indisciplinada grei dos homens de letras. Ninguém lhe tinha que exprobrar um ataque ou perdoar uma invectiva.

Quem isto escreve, entrou para a Academia sem saber como. Ouviu dizer que foi sua inclusão no douto grêmio a obra de um confrade com quem outrora havia mantido peleja, e talvez demasiado viva, o Sr. Dr. Lúcio de Mendonça. Se o boato é verdadeiro, só pode redundar em prol do imparcial confrade, que talvez errou, mas supondo fazer justiça a um adversário. Humilde lidador da imprensa, o escrevedor destas linhas ali tão deslocado se acha como, por exemplo, um soldado raso, todo empoeirado das suas marchas e do seu trabalho de sapa, entre donairosos generais, que em sábias manobras ideiam batalhas incruentas. Mas dos motivos por que acredita estar ali condecorado, sobressai o ter como pares alguns brasileiros de incontestado mérito. Era Machado o primeiro desses.

Impossível seria que em vida quase septuagenária, através da administração e das letras, ele não houvesse, muito sem o querer, gerado antipatias, não direi inimizades, e provocado indébitas agressões. Lá pelos intermúndios burocráticos não sei o que tenha ocorrido. Aqui nos literários, época houve em que Machado foi objeto de rijos e porfiosos assaltos... Mas nunca respondeu. A brincar com ele, uma vez, eu lhe disse que ainda o havia de obrigar a ter comigo uma polêmica.

Não faça tal, respondeu-me a gaguejar ligeiramente, que os partidos não seriam iguais : isto para você seria uma festa, uma missa cantada na sua capela, e para mim uma aflição...

Nunca verdadeiramente privei com Machado de Assis, mas de uma vez se me desvendou o homem íntimo e pelo seu lado meigamente afetivo.

Estava eu a conversar com alguém na Rua Gonçalves Dias, quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos a tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bond das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até casa.

Tão insignificante fineza, que ninguém recusara ao primeiro transeunte, pareceu grande cousa àquela natureza retraída, mas amorável. Procurou-me de propósito para mo agradecer e, na longa conversação que então travamos, descobriu-me o coração ulcerado pela recente morte da sua Carolina. Após uma crise de lágrimas, ele me deixou profundamente entristecido: triste por vê-lo assim malferido, triste pela convicção de que para tal golpe não havia bálsamo possível.

Ao tempo em que por vezes nos encontrávamos em festas, tinha Machado uma frase feita, para designar a sua discreta desaparição, sem rumor nem despedidas: “Vou raspar-me à francesa!” Talvez por isto me parece que às pompas do oficialismo ele preferira que mais depressa o levassem para junto de um túmulo querido... Mas não censuro, antes aplaudo o ato do Governo com essas honras excepcionais a um homem que nada foi na política e que não deixa filhos nem parentes poderosos.

Vale! Tem saúde! diziam os romanos aos mortos bem-amados, fórmula absurda porque só aplicável aos vivos. Xaire! Regozija-te! exclamavam os gregos, e sem razão maior. No Cristianismo, que não é só a mais pura porém a mais bela das sínteses filosóficas, quão melhor nos exprimimos com o nosso adeus!

Ele é uma prece, uma suprema recomendação do viajor ao grande Espírito de amor e misericórdia. Adeus, irmão e amigo!



(Jornal do Brasil, 1-10-1908.)




* Jornalista, professor e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras.

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