Machado
de Assis
* Por
Carlos de Laet
Desejara
não escrever sobre o caro morto. Outros já o têm feito. Outros
ainda o farão melhor. Em sua glória, aliás, e definitiva colocação
no panteon literário, nada pode influir o meu juízo nestas páginas
efêmeras da imprensa, amanhã já dispersas, e que com razão têm
sido comparadas aos antigos oráculos de Dodona, lançados em folhas
de carvalho, com pretensões a dirigirem os povos, e logo tomadas
pelo vento e por ele arrastadas ao limbo do olvido. Mas ninguém faz
como quer. Insensivelmente se me volve o espírito para a câmara
ardente onde no seu esquife enflorado se embarca o velho amigo,
caminho da eternidade.
Eu
não ignorava que Machado de Assis estava enfermo; e só me admirava
a resistência daquele débil organismo, quando bem a cheio no
coração o sabia ferido, desde que de súbito o colheu a irreparável
desgraça a perda da mulher, em quem mais do que em nenhuma cabia o
doce epíteto de consorte.
Dolorido
ainda não há muito o víamos aí pela rua, ou na Livraria Garnier;
mas singularmente se enganava quem o supunha vivo. Nem sempre se
agoniza no leito. Agonia é luta, luta com a morte, que afinal sempre
entoa o canto de vitória. O pobre Machado agonizava de pé, e
ocultando na sua impassibilidade de moderno estoico os tremendos
combates que lá por dentro se lhe travavam.
Quando
quem escreve estas linhas começou a entender de literatura, já o
nome de Machado de Assis era apontado como o de exímio cultor das
letras. Sua obra poética, primeiro ensaiada em jornais e revistas,
ia tomando vulto e formava volumes. Suas crônicas, seus contos, suas
novelas repetidamente acusavam o lavor de um artista da palavra. De
vez em quando apareciam no teatro algumas das suas tentativas
dramáticas, e todas deixavam a impressão de um talento mesurado, e
eurrítmico, isto é, que por principal mérito de forma houvesse o
sentimento de comedido e decoroso, no sentido em que o tomava a
estética dos clássicos.
Porque
ele o era, um clássico verdadeiro, no tocante à forma, no minucioso
estudo da língua, e no escrupuloso cuidado com que se apartava de
quanto se lhe afigurasse dissonância.
Espírito
assim conformado, claro está que não se podia alar em grandes
surtos aos extremos em que por vezes o rigor da crítica apanha os
geniais desvairos de um Shakespeare no drama, de Hugo no tentame
lírico, ou de Hoffmann no conto. O famoso ne quid nimis (“nada em
demasia”) achou no glorioso extinto impecável observante. Sabe-se
que os termômetros comuns podem marcar desde os grandes frios, mais
gélidos ainda que o próprio gelo, até a cálida temperatura em que
a água se faz vapor; mas; por perfeita que seja a graduação, só
aproximativas se revelam as indicações do instrumento. Nos
extremos, então, muito é possível errar a observação
termométrica. Quando, porém, para as temperaturas médias, dos
aposentos ou dos corpos humanos, a coluna está preparada de modo que
só funciona entre próximos limites, não é difícil apanhar com
justeza diferenças mínimas, em décimos de grau. O termômetro
estético do nosso Machado era um desses aparelhos de precisão,
impróprios para as temperaturas violentas das paixões, mas
admiravelmente calibrado para indicar e traduzir, com máxima exação,
toda a gama das modalidades físicas entre dados limites, que aliás
são os comuns na vida social.
A
religião e a política, eis as duas causas por que mais se apaixonam
os homens; e nunca ninguém as viu discutir pelo extinto chefe
literário. É que isso, e com razão, lhe parecia uma luta, e ele
absolutamente não se propunha lutar. Seu campo de ação ele o
delimitara na expressão dos afetos brandos ou na crítica impessoal
dos costumes crítica em que jamais se demasiava, não direi até a
ferroada, porém mesmo até a picada de alfinete. As personagens mais
ridículas e censuráveis, nos contos e escritos de Machado, nunca
tanto o são que deixem de ser socialmente aceitáveis. Se fora a
charge uma “publicação a pedido”, nenhum dos criticados acharia
motivo para um processo por injúria.
Temperamentos
assim tímidos e moderados não é raro que descaiam na fraqueza ou
pusilanimidade; mas tal não sucedia com o nosso querido morto. Sua
eurritmia (peço licença de voltar ao termo tão bem feito para
dizer a minha ideia); a sua eurritmia estética prolongava-se no
terreno moral. Incapaz de censurar com veemência um abuso, ele
também o era de baixar à lisonja. Em suas relações oficiais sabia
guardar conveniências, mas não se vergava a elas. Impoluto,
impoluível no tocante a interesses pecuniários, tão absurdo lhe
fora um conchavo, uma culposa complacência, quanto um solecismo ou
uma vulgaridade estilística. Sabe-se que o arminho tem à lama
horror instintivo, asseio que se exagera contando-se que, se acaso se
mancha, logo morre de nojo. Daí aqueles altivos brasões dos Rohan,
da Bretanha, onde figura o arminho com a legenda Potius mori quam
foedari. Antes morrer que manchar-me! Soberbo lema de fidalgos; e que
sem deslize da verdade também se pudera por sobre a lápide deste
honrado homem do povo, tão fidalgo, ele também, na imaculável
probidade.
Modesto
nas suas origens, porque começou a trabalhar como simples operário
tipógrafo, ele cresceu até às alturas em que o vimos, não por um
desses abalos sísmicos com que frequentes emergem celebridades, como
no Oceano Pacífico se improvisam ilhas; e antes a compararíamos, a
fama literária do extinto amigo, àquelas outras formações
madrepóricas, que lentas e lentas se vão erguendo do abismo, pelo
trabalho acumulado de muitos anos. O que fora recife, alteia-se
finalmente exornado de plantas, que um dia serão árvores,
desatando-se em flores e frutos de bênção.
Quando
se fez a Academia de Letras, realizada em meio da República essa
criação aristocrática, ante a qual tinha recuado a democracia
zombeteira do Império, se um por um se tomassem os votos para a
escolha do chefe, creio que ninguém discreparia na escolha de
Machado. Simpático aos mais velhos, porque com eles tinha vivido, ou
de pouco os precedera; bem querido dos novos, para quem sempre usava
de benevolência, escusando senões e propiciando tentativas Machado
foi o cabeça unanimemente aceito pela indisciplinada grei dos homens
de letras. Ninguém lhe tinha que exprobrar um ataque ou perdoar uma
invectiva.
Quem
isto escreve, entrou para a Academia sem saber como. Ouviu dizer que
foi sua inclusão no douto grêmio a obra de um confrade com quem
outrora havia mantido peleja, e talvez demasiado viva, o Sr. Dr.
Lúcio de Mendonça. Se o boato é verdadeiro, só pode redundar em
prol do imparcial confrade, que talvez errou, mas supondo fazer
justiça a um adversário. Humilde lidador da imprensa, o escrevedor
destas linhas ali tão deslocado se acha como, por exemplo, um
soldado raso, todo empoeirado das suas marchas e do seu trabalho de
sapa, entre donairosos generais, que em sábias manobras ideiam
batalhas incruentas. Mas dos motivos por que acredita estar ali
condecorado, sobressai o ter como pares alguns brasileiros de
incontestado mérito. Era Machado o primeiro desses.
Impossível
seria que em vida quase septuagenária, através da administração e
das letras, ele não houvesse, muito sem o querer, gerado antipatias,
não direi inimizades, e provocado indébitas agressões. Lá pelos
intermúndios burocráticos não sei o que tenha ocorrido. Aqui nos
literários, época houve em que Machado foi objeto de rijos e
porfiosos assaltos... Mas nunca respondeu. A brincar com ele, uma
vez, eu lhe disse que ainda o havia de obrigar a ter comigo uma
polêmica.
Não
faça tal, respondeu-me a gaguejar ligeiramente, que os partidos não
seriam iguais : isto para você seria uma festa, uma missa cantada na
sua capela, e para mim uma aflição...
Nunca
verdadeiramente privei com Machado de Assis, mas de uma vez se me
desvendou o homem íntimo e pelo seu lado meigamente afetivo.
Estava
eu a conversar com alguém na Rua Gonçalves Dias, quando de nós se
acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo.
Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de
tempos a tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro
cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na
mais próxima farmácia e só o deixei no bond das Laranjeiras,
quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse
até casa.
Tão
insignificante fineza, que ninguém recusara ao primeiro transeunte,
pareceu grande cousa àquela natureza retraída, mas amorável.
Procurou-me de propósito para mo agradecer e, na longa conversação
que então travamos, descobriu-me o coração ulcerado pela recente
morte da sua Carolina. Após uma crise de lágrimas, ele me deixou
profundamente entristecido: triste por vê-lo assim malferido, triste
pela convicção de que para tal golpe não havia bálsamo possível.
Ao
tempo em que por vezes nos encontrávamos em festas, tinha Machado
uma frase feita, para designar a sua discreta desaparição, sem
rumor nem despedidas: “Vou raspar-me à francesa!” Talvez por
isto me parece que às pompas do oficialismo ele preferira que mais
depressa o levassem para junto de um túmulo querido... Mas não
censuro, antes aplaudo o ato do Governo com essas honras excepcionais
a um homem que nada foi na política e que não deixa filhos nem
parentes poderosos.
Vale!
Tem saúde! diziam os romanos aos mortos bem-amados, fórmula absurda
porque só aplicável aos vivos. Xaire! Regozija-te! exclamavam os
gregos, e sem razão maior. No Cristianismo, que não é só a mais
pura porém a mais bela das sínteses filosóficas, quão melhor nos
exprimimos com o nosso adeus!
Ele
é uma prece, uma suprema recomendação do viajor ao grande Espírito
de amor e misericórdia. Adeus, irmão e amigo!
(Jornal
do Brasil, 1-10-1908.)
*
Jornalista, professor e poeta, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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