domingo, 16 de abril de 2017

Da série As Mais Belas Histórias


* Por André Falavigna
 

Trata-se de meu tema mais recorrente, eu sei. Inclusive, terei que repetir algumas histórias, nesta crônica, que já estiveram presentes em outras. E muitos dos personagens. Mas, compreendam: nas ocasiões em que foram citadas, foram-no acessoriamente. Ainda que tenham consistido no ponto alto de certas crônicas, em nenhuma se as utilizou, se não como eixo da narrativa, ao menos como principal assunto. Mesmo por ocasião da apresentação do prêmio André Falavigna, oferecido ao autor da mais despropositada, todavia justa grosseria do ano, concentramo-nos muito mais na idéia motivadora do evento do que nas cafajestadas em si. É chegada a hora de corrigir tal distorção. O rompante baixo é a anedota em tempo real. Não é possível que todo o potencial humorístico da realidade convertida em piada seja objeto apenas de reprimendas morais, por mais que cabidas. Eu, pelo menos, não consigo mais negligenciar a faceta cômica, mas reveladora, desses episódios plenos daquela natureza prática capaz de purgar todo caráter caricatural, tão típico da piada tornada a própria vida e que, assim, fede a enxofre, da vida que inspira a piada e que tem, portanto, qualquer coisa de ironia celestial.

Exemplos, senhores, exemplos. Já lhes contei da tia de meu pai que, no início dos anos 80, aproveitando-se de período de certa prosperidade familiar cujo melhor resultado fora a aquisição de uma pequenina propriedade rural, cismou de tratar a coisa como se fôssemos parte de um empreendimento turístico-hoteleiro. A parentada toda ia bastante e tudo era muito divertido. A referida senhora, das mais assíduas, desde logo se comportou de maneira – como direi? – mais ou menos imprópria. O mulherio cozinhando, lavando louça, às vezes auxiliado pela criançada que ajudava a pôr ou tirar a mesa e ela lá, curtindo a fantasia de madame. Sua filha, que sempre viajava consigo mas que, por seu turno, mostrava-se disposta a tomar parte tanto dos prazeres como das tarefas relacionadas a ocasiões assim, passava pelos maiores constrangimentos. A cada tentativa de socorrer a quem fosse, a mãe a repreendia.

Onde já se viu? Eram visita, não é mesmo?

Minha mãe azucrinava meu pai por conta da desídia da outra. Afinal, a tia era dele e, por isso, uma mangia polenta. As dela, ajudavam – aquela velha arenga do sul que trabalha e que a Itália rica chama de "Norte da África". Diante dessa pequena reprodução, inconsciente aliás, de revanchismos importados (e, sejamos justos: cada dia mais nos aperfeiçoamos na altamente progressista arte de importar ódios) o Gordo foi se enfezando. Proibiu aquele assunto em casa, brigou com a minha mãe. Mas sabia que, daquela vez pelo menos, ela estava certa. Só estava também, daquela vez como em todas as demais, muito mais preocupada em permanecer irritada do que em debelar verdadeiramente os focos de irritação.

Bom, o homem agüentou tudo até o feriado mais próximo, deixando escapar diversas oportunidades que, ao menos em aparência, seriam perfeitas para liquidar a fatura. Compensou, acreditem. Na ocasião, a tal tia cometeu o aguardado erro grave, aquele que abriria as portas pelas quais o corretivo poderia ser completamente atravessado como um móvel incômodo, mas tão bonito que não se quer ver arranhado: apareceu sem a filha, prima do meu pai, ausente talvez porque estivesse envergonhada demais para se permitir o prazer de uma piscininha, dum pomar, talvez dum trote. Era a deixa para que aquele homenzarrão enganosamente pachorrento pusesse-se a postos: com toda a calma de que era capaz, conseguiu deixar chegar a hora exata. E ela veio no almoço de qualquer dia (eram todos iguais, os dias e os almoços - ensolarados aqueles e nababescos estes) e, desinteressado, entremeando esforços para fatiar um pernil monumental, perguntou a tal tia porque a prima Fulana não havia aparecido. A gorda senhora, bastante afetada, intercalou dois goles de Cuba Libre gemendo algo como "Ah, Joscar (contração curiosa de José com Oscar, muito utilizada por parte da família dele), não sei o que deu nela; saúde sabe? Estava muito, muito indisposta, a tadinha".

Foi então que o Gordo levantou o tronco, antes debruçado sobre a travessa gloriosa, passou o pano pela testa encharcada, zelando pela integridade da peça de resistência, e, entre chupadelas cafajestes nos dedos melados de gordura de porco, disparou:

_ Ah, tia, não se preocupa. O pior do verão está aí chegando e, com aquele calorão todo, o corrimento dela seca.

Tive um chefe que se tornou meu amigo, mais velho do que eu em algumas décadas. Camarada pequenino e inspirado, ao ouvir de mim que certo conhecido nosso transbordava os mais horripilantes e olorosos hormônios toda vez que via alguma moça enfiada em inocentes calças brancas respondeu-me que, de sua parte, compreendia mais do que bem a tara:

_ Amiguinho, calça branca até no varal me deixa de pau duro.

Isso porque conhecêramos-nos há três dias. Depois, melhorou. Com freqüência, tersóis incomodavam esse meu amigo. Nessa passagem é que descobri que há muitos tipos de tersol e inúmeras maneiras de combatê-los: há colírios certos para os de origem infecciosa, outros para os alergênicos, outros ainda para os psicossomáticos; trata-se duma verdadeira festa. E, nas farmácias, não se pode os vender assim, como se fossem colírios não alucinógenos: o sujeito tem de ir ao oftalmologista para verificar qual providência cabe para o seu mal, sob pena até de sair cego da auto-medicação. Impaciente, meu então chefe chamou-me a acompanhá-lo para a farmácia mais próxima, donde, perninhas rápidas, passos curtos e movimentos antigos de jogador aposentado, solicitou a atenção da titular da casa:

_ Minha querida, o que você tem aí para isto aqui? Eu sei, eu sei, o oftalmo é quem sabe. Mas, minha linda, ajude este pobre homem desenganado e de saco cheio, muito cheio, cheio de dar dó. Diga lá o que tenho que comprar que compro em outro lugar e não lhe causo problemas. Você me ajuda, eu não te preocupo. Pelo amor, pelo amor de Deus...

A moça, sabe-se lá por que louca para ceder, dispôs no balcão, entre desconfiada e ousada, três ou quatro produtos de diferentes naturezas. E explicou-os lindamente, ainda que sem oferecer-nos a dica precisa, a chave fatal que arruinaria o maldito tersol. Seu elegante adversário insistiu com jeito, sempre renovando as promessas de não complicação. Após poucos, mas intensos minutos, veio a capitulação denunciada pela direção de um dedinho salvador e apetitoso de tão trêmulo:

_ Veja bem... No seu caso, está bem claro que é este que vai servir...

Infiel às próprias palavras, meras promessas de campanha, o sujeito estendeu a mão lépida, tomou a caixinha para o bolso da camisa e disparou, tergiversando, mal disfarçando a cara-de-pau numa simulação de pressa executiva:

_ E pra disfunção erétil, o que você tem aí?

Embrulhada pelo diversionismo, nossa nova amiguinha pôde apenas esboçar um acanhado “Como?”, enquanto não se impedia de ir aflorando simpática curvinha dos lábios bem desenhados. Ao que lhe responderam, acrescendo-se assim alguma galanteria ao grotesco:

_ Só o seu sorriso né, meu amor?

Esta série é interminável, renderia muitos e valiosos volumes. Quando puder, aliás, levarei-a adiante. Material não falta: apenas duas historietas ganharam-me a semana. Interesse propedêutico, muito menos - num tempo cada vez mais ominosamente cheio de medo e prevenção como o nosso, a divulgação deste tipo de incidente é quase um exercício de moralidade altaneira. Eu sei, há quem se chateie.

Já é um começo, afinal.



(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, http://ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.







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