domingo, 4 de setembro de 2016

As capelas imperfeitas

* Por Rubem Costa


Foi pouco antes da Revolução dos Cravos. Portugal era então uma nação triste. Esvaindo-se na pobreza, à sombra ainda da ditadura salazariana, estava à beira do colapso nas mãos de Marcelo Caetano. Assim, o que restava ao estrangeiro que aportava, era um país estagnado numa Europa já recuperada dos traumas da guerra que ficara um lustro atrás. Flutuando na soledade, sobrava entanto um ponto de reflexão ao viandante que, mal chegado, percebia de logo o eco do passado e a saudade sussurrando nas noites silenciosas.

Naquele presente lusitano agonizante, o turista todavia podia recolher - nos destroços do regime sem risos - um pouco de luz refletida nas sagas de um mundo que já não era: a revivescência dos grandes feitos e o regresso virtual às glórias engessadas. Esse era o mote que impulsionava a recordação dos fastos heróicos. Lembranças que levavam à aclamação do pretérito para compensar a impotência do momento triste. Um canto nostálgico que vindo de priscas eras tem um nome - epopéia.

Entre o indivíduo e os povos, é a recomposição do que findou, vestígios de uma era que foi brilho para compensar o que já não existe como linha condutora das emoções que agitam a mente e falam ao coração. Na senectude, cansado e vencido, o homem se aviva com as peripécias da juventude tanto quanto, na hora da decadência, os povos se acaloram com a grandeza que restou plantada em sua memória. Homero engrandeceu na Ilíada a Grécia estertorante e Camões escreveu "Os Lusíadas" no momento em que Portugal perdia o domínio dos mares.

Quando eu chegava a Lisboa, o que se ouvia, disfarçado na plangência dos fados, era uma epopéia escondida no lusco-fusco das tabernas, preparando ao som das guitarras um novo amanhecer.

Essas reflexões me chegaram logo depois que o precário avião da TAP aterrisara sacolejante no aeroporto. De repente, na convergência de tantos séculos de história, somando lembranças aprendidas nos livros, assomou-me à mente um episódio já quase esquecido na cronologia portucalense que se instala na cronologia como expressão da dignidade de um artista que, mesmo paupérrimo de haveres materiais, se alteou altissonante na defesa de sua arte.

Mergulhei na saga das Capelas Imperfeitas. Para compreender, é preciso remontar ao século XIV, quando em 1385, nas plagas de Aljubarrota o exército lusitano venceu os soldados de Castela, consolidando Portugal como reino independente. Diante do feito glorioso, D. João I mandou erguer em estilo gótico o monumental Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Construção que iria alongar-se no tempo até as primeiras décadas do século 16, quando D. Manuel determinou o prosseguimento das então paralisadas obras do Claustro Real, fazendo inserir nos ornamentos que as compunham a cruz de Cristo e as esferas armilares tão originalmente portuguesas como símbolo da Casa Real.

Por trás da igreja, ergueram-se seis altas capelas com um portal constituído por uma sucessão de arcos e colunelos minuciosamente decorados. A obra foi entregue ao mestre-arquiteto Matheus Fernandes, que tracejou abóbadas artesanadas, grandes fechos centrais e esguias janelas para exterior. Na entrada, magnífico portal todo entretecido de arcos ogivais, de chaves e trilobados, cuja grandiosidade e beleza eram ressaltados em planos superpostos com pilastras ornamentadas de altos relevos. Um trabalho de concepção que causava espanto pela original combinação de formas e linhas.

Tudo corria bem até o dia em que Mateus Fernandes veio a falecer. O rei chama para concluir as capelas a João de Castilho, outro grande artista que magníficas construções legou a Portugal. Todavia o novo arquiteto provinha da escola de Roma, iluminado pela grandiosidade da renascença italiana. Amante da linha clássica de colunas jônicas, janelas duplas de arquivoltas, saunos e dríades, o mestre começou a trabalhar, firmando nos edifícios suas ideações totalmente diversas do antecessor.

D. Manuel que amava o estilo a que ligou o nome, ficou desgostoso com a nova orientação e tenta impor ao arquiteto a feitura de seu agrado. Mas, se o monarca amava o estilo, o artista estimava a arte. Face à exigência, atira as ferramentas ao chão e volta as costas ao rei estupefato. É que o arquiteto não sacrificava a sua marca nem mesmo à imperiosa ordem real. Ainda que a obra ficasse inacabada, mantinha integra sua percepção do belo. Desde então paralisou-se a o feito. E ao monumento assim inconcluído se deu o nome de Capelas Imperfeitas, atravessando os séculos como símbolo da liberdade de pensar e da faculdade de agir independente da hierarquia social.

Essa é a lenda que fala de presunção e de sonhos. Pletora de emoções que faz surgir, entanto, uma dúvida, a de saber quem estava com a razão: o rei, defensor do projeto que perpetuava na história o seu orgulho ou o arquiteto cioso de si mesmo que punha a arte acima das ambições reais. Indagação que nos leva a um olhar introspectivo sobre nós mesmos para, na visão interior dos conflitos, discutir o que é mais relevante: persistir no canto nostálgico de nossas vitórias esmaecidas ou recompor as emoções sofridas, redesenhando nossas eventuais capelas imperfeitas. Convém indagar se vale a pena abrir mão de nossa vaidade para sermos juiz de nós mesmos. Nessa ansiedade hamletiana, talvez seja oportuno o conselho de Fernando Pessoa. A alma não sendo pequena, tudo vale a pena.


•  Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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