As capelas imperfeitas
* Por
Rubem Costa
Foi pouco antes da
Revolução dos Cravos. Portugal era então uma nação triste. Esvaindo-se na
pobreza, à sombra ainda da ditadura salazariana, estava à beira do colapso nas
mãos de Marcelo Caetano. Assim, o que restava ao estrangeiro que aportava, era
um país estagnado numa Europa já recuperada dos traumas da guerra que ficara um
lustro atrás. Flutuando na soledade, sobrava entanto um ponto de reflexão ao
viandante que, mal chegado, percebia de logo o eco do passado e a saudade
sussurrando nas noites silenciosas.
Naquele presente
lusitano agonizante, o turista todavia podia recolher - nos destroços do regime
sem risos - um pouco de luz refletida nas sagas de um mundo que já não era: a
revivescência dos grandes feitos e o regresso virtual às glórias engessadas.
Esse era o mote que impulsionava a recordação dos fastos heróicos. Lembranças
que levavam à aclamação do pretérito para compensar a impotência do momento
triste. Um canto nostálgico que vindo de priscas eras tem um nome - epopéia.
Entre o indivíduo e os
povos, é a recomposição do que findou, vestígios de uma era que foi brilho para
compensar o que já não existe como linha condutora das emoções que agitam a
mente e falam ao coração. Na senectude, cansado e vencido, o homem se aviva com
as peripécias da juventude tanto quanto, na hora da decadência, os povos se
acaloram com a grandeza que restou plantada em sua memória. Homero engrandeceu
na Ilíada a Grécia estertorante e Camões escreveu "Os Lusíadas" no
momento em que Portugal perdia o domínio dos mares.
Quando eu chegava a
Lisboa, o que se ouvia, disfarçado na plangência dos fados, era uma epopéia
escondida no lusco-fusco das tabernas, preparando ao som das guitarras um novo
amanhecer.
Essas reflexões me
chegaram logo depois que o precário avião da TAP aterrisara sacolejante no
aeroporto. De repente, na convergência de tantos séculos de história, somando
lembranças aprendidas nos livros, assomou-me à mente um episódio já quase
esquecido na cronologia portucalense que se instala na cronologia como
expressão da dignidade de um artista que, mesmo paupérrimo de haveres
materiais, se alteou altissonante na defesa de sua arte.
Mergulhei na saga das
Capelas Imperfeitas. Para compreender, é preciso remontar ao século XIV, quando
em 1385, nas plagas de Aljubarrota o exército lusitano venceu os soldados de
Castela, consolidando Portugal como reino independente. Diante do feito
glorioso, D. João I mandou erguer em estilo gótico o monumental Mosteiro de
Santa Maria da Vitória. Construção que iria alongar-se no tempo até as
primeiras décadas do século 16, quando D. Manuel determinou o prosseguimento
das então paralisadas obras do Claustro Real, fazendo inserir nos ornamentos
que as compunham a cruz de Cristo e as esferas armilares tão originalmente
portuguesas como símbolo da Casa Real.
Por trás da igreja,
ergueram-se seis altas capelas com um portal constituído por uma sucessão de
arcos e colunelos minuciosamente decorados. A obra foi entregue ao mestre-arquiteto
Matheus Fernandes, que tracejou abóbadas artesanadas, grandes fechos centrais e
esguias janelas para exterior. Na entrada, magnífico portal todo entretecido de
arcos ogivais, de chaves e trilobados, cuja grandiosidade e beleza eram
ressaltados em planos superpostos com pilastras ornamentadas de altos relevos.
Um trabalho de concepção que causava espanto pela original combinação de formas
e linhas.
Tudo corria bem até o
dia em que Mateus Fernandes veio a falecer. O rei chama para concluir as capelas
a João de Castilho, outro grande artista que magníficas construções legou a
Portugal. Todavia o novo arquiteto provinha da escola de Roma, iluminado pela
grandiosidade da renascença italiana. Amante da linha clássica de colunas
jônicas, janelas duplas de arquivoltas, saunos e dríades, o mestre começou a
trabalhar, firmando nos edifícios suas ideações totalmente diversas do
antecessor.
D. Manuel que amava o
estilo a que ligou o nome, ficou desgostoso com a nova orientação e tenta impor
ao arquiteto a feitura de seu agrado. Mas, se o monarca amava o estilo, o
artista estimava a arte. Face à exigência, atira as ferramentas ao chão e volta
as costas ao rei estupefato. É que o arquiteto não sacrificava a sua marca nem
mesmo à imperiosa ordem real. Ainda que a obra ficasse inacabada, mantinha
integra sua percepção do belo. Desde então paralisou-se a o feito. E ao
monumento assim inconcluído se deu o nome de Capelas Imperfeitas, atravessando
os séculos como símbolo da liberdade de pensar e da faculdade de agir independente
da hierarquia social.
Essa é a lenda que
fala de presunção e de sonhos. Pletora de emoções que faz surgir, entanto, uma
dúvida, a de saber quem estava com a razão: o rei, defensor do projeto que
perpetuava na história o seu orgulho ou o arquiteto cioso de si mesmo que punha
a arte acima das ambições reais. Indagação que nos leva a um olhar
introspectivo sobre nós mesmos para, na visão interior dos conflitos, discutir
o que é mais relevante: persistir no canto nostálgico de nossas vitórias esmaecidas
ou recompor as emoções sofridas, redesenhando nossas eventuais capelas
imperfeitas. Convém indagar se vale a pena abrir mão de nossa vaidade para
sermos juiz de nós mesmos. Nessa ansiedade hamletiana, talvez seja oportuno o
conselho de Fernando Pessoa. A alma não sendo pequena, tudo vale a pena.
• Rubem Costa é escritor e membro da Academia
Campinense de Letras.
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