domingo, 8 de novembro de 2015

A apanhadora de estrelas


* Por Risomar Fasanaro



Quando as chuvas chegaram, tornou-se difícil saber quem mais perdera a seiva: a terra ou ela.

A tribo caminhava pelas matas, agregando às tantas dores e lutas os restos que os brancos deixaram: algumas roupas e muitos vícios. Agora estavam perto do mar. O mesmo mar que trouxera os que iriam destruí-los.

Talvez só ela permanecesse a mesma. Não por sua vontade, mas pela própria incapacidade de se adaptar aos novos costumes.

De repente tudo perdera o contorno no cinza que se formara. Os homens correndo de um lado para o outro, colocando estacas na ponte para que a correnteza não a levasse, removendo os que viviam perto das margens, carregando estoques de lenha para a aldeia.

A vida já ia de mal a pior, quando a  malária desceu seu manto amarelo, ensopando as redes que tremiam às horas certas.

À noite, ao redor da fogueira, se reuniam. Acocorados, fumando e bebendo, num silêncio de fim de tudo. Aproximavam-se do fogo, com as calças frouxas encharcadas, procurando secar-se ao calor do fogo.

Ela, com as mãos agitadas, dizia frases desconexas enquanto caminhava entre eles, preocupados demais com a ameaça que pairava, para perceberem seu desespero.

O dia inteiro ninguém a via. O que fazia, ninguém sabia; mesmo porque não procurava saber.

Com o samburá debaixo do braço, ela  ia para a praia e lá ficava o dia inteiro. Por longo tempo seus pés marcaram aqueles caminhos. Uma pessoa comum na tribo, apenas mais velha. Tão velha que ninguém conseguiria avaliar quantas luas corriam pelos rios do seu rosto: emaranhado de afluentes, onde cada traço escondia uma perda. Tantas, mas  que hoje eram apenas leitos dos que tinham partido. Caminhos por onde a tribo percorria sua história: um suceder de naufrágios até chegar ao mar, o começo do fim.

Impossível determinar quando os espíritos da velhice começaram a perturbá-la. Só depois que as chuvas cessaram, perceberam a mudança. Agora ela era uma mistura de gente e planta. Adquirira nódulos de troncos de árvores na pele. O lodo se enredara pelos sulcos da velhice, enverdecendo tudo. Nos braços, trepadeiras se enrodilhavam indo florir-lhe os ombros, e ela, indiferente como se houvesse sido sempre essa mistura de vegetal e alma, ora murmurava palavras soltas, sem nexo, ora contava histórias de índios gigantes saídos do centro da terra, combatendo animais imensos. De um mar que ia até às montanhas, deixando lá em cima uma tribo escolhida, aonde as enchentes não chegavam.

Falava do mar. Da busca das coisas que ninguém vê, e de sua boca saíam algas e corais, para deslumbramento das crianças. Tentava mostrar que o ir e vir das ondas, no seu vestir e despir praias era uma forma de mostrar a diferença entre estar vestido e estar nu.

A velha índia falava a linguagem dos homens brancos; utilizava o mesmo vocabulário e isso  mais do que a loucura, assustava seus irmãos,  seu povo. Justamente ela a única que nada assimilara dos brancos.

Todas as manhãs ela voltava à praia. Ficava horas e horas apanhando estrelas do mar. Horas e horas com elas entre os dedos endurecidos, isolada de tudo – em um outro universo.

Preocupados, procuraram mantê-la afastada da praia. Talvez do mar viesse aquele mundo de miragens que nem eles conheciam. Talvez de lá viesse  o perigo. Mas ela burlava a todos e fugia antes de o sol nascer. Recolhia suas estrelas no samburá e, à tarde, antes do sol-posto, ao mar retornava. De longe a viam, a imagem vermelha confundindo-se com o fim do dia. Fez isso durante muitos meses, até que todos se acostumaram e não mais a impediram de sair.

Uma tarde, porém, perceberam que voltara um pouco adoentada e não a deixaram voltar à praia. Quem sabe um princípio de pneumonia. As outras mulheres foram lhe fazer companhia. Muito agitada, ela tentou de todas as formas explicar às outras a necessidade de ir à praia, mas nenhuma cedeu. E ela, andando de um lado para o outro, embora doente, não conseguia dormir.

Depois de muito se exaltar, de muito se desesperar, sentou-se e esperou.

O vilarejo viveu três dias de escuridão. O medo das chuvas voltou. O chumbo das nuvens pesava tanto que parecia querer rompê-las, desabando sobre as ocas.

O desespero da índia aumentava. Os olhos vermelhos de não dormir. A vigilância se revezando. Por fim, agarrada ao samburá, entre o cansaço e a debilitação, ela adormeceu.

Na oca só se ouvia o seu ressonar. Em volta, todos os outros velavam seu sono. Ali permaneceram e depois de algum tempo perceberam que o céu se tornava mais e mais escuro.

A noite chegou e, com ela, um vento escuro passou por entre  deles. O sono da índia cada vez mais agitado. As mãos movimentavam-se no vazio, procurando.

O mar cavalgava o branco de suas ondas e vinha até às mulheres no cheiro de maresia, salgando olhos, gargantas e almas. Exigência marinha cobrando, trazendo ameaças: não pagassem e ele invadiria a vila, cobrindo vidas e pertences.

Junto com um ruído mais forte, o samburá se abriu e, diante das mulheres atônitas riscos de luzes cortaram a escuridão saindo pela porta de entrada. O céu abaixou-se para colher essas luzes, tão grande era a distância e a urgência e tão curto o tempo.

E todos viram quando o mar pouco a pouco se acalmou, o céu cobriu-se de estrelas, e o rosto da velha índia adormecida tornara-se tão belo como jamais alguém haviam sonhado.
        
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.

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