A apanhadora
de estrelas
* Por Risomar
Fasanaro
Quando as chuvas chegaram, tornou-se
difícil saber quem mais perdera a seiva: a terra ou ela.
A tribo caminhava pelas matas,
agregando às tantas dores e lutas os restos que os brancos deixaram: algumas roupas
e muitos vícios. Agora estavam perto do mar. O mesmo mar que trouxera os que
iriam destruí-los.
Talvez só ela permanecesse a mesma. Não
por sua vontade, mas pela própria incapacidade de se adaptar aos novos
costumes.
De repente tudo perdera o contorno no
cinza que se formara. Os homens correndo de um lado para o outro, colocando
estacas na ponte para que a correnteza não a levasse, removendo os que viviam
perto das margens, carregando estoques de lenha para a aldeia.
A vida já ia de mal a pior, quando
a malária desceu seu manto amarelo,
ensopando as redes que tremiam às horas certas.
À noite, ao redor da fogueira, se
reuniam. Acocorados, fumando e bebendo, num silêncio de fim de tudo.
Aproximavam-se do fogo, com as calças frouxas encharcadas, procurando secar-se
ao calor do fogo.
Ela, com as mãos agitadas, dizia frases
desconexas enquanto caminhava entre eles, preocupados demais com a ameaça que
pairava, para perceberem seu desespero.
O dia inteiro ninguém a via. O que
fazia, ninguém sabia; mesmo porque não procurava saber.
Com o samburá debaixo do braço,
ela ia para a praia e lá ficava o dia
inteiro. Por longo tempo seus pés marcaram aqueles caminhos. Uma pessoa comum
na tribo, apenas mais velha. Tão velha que ninguém conseguiria avaliar quantas
luas corriam pelos rios do seu rosto: emaranhado de afluentes, onde cada traço
escondia uma perda. Tantas, mas que hoje
eram apenas leitos dos que tinham partido. Caminhos por onde a tribo percorria
sua história: um suceder de naufrágios até chegar ao mar, o começo do fim.
Impossível determinar quando os
espíritos da velhice começaram a perturbá-la. Só depois que as chuvas cessaram,
perceberam a mudança. Agora ela era uma mistura de gente e planta. Adquirira
nódulos de troncos de árvores na pele. O lodo se enredara pelos sulcos da
velhice, enverdecendo tudo. Nos braços, trepadeiras se enrodilhavam indo
florir-lhe os ombros, e ela, indiferente como se houvesse sido sempre essa
mistura de vegetal e alma, ora murmurava palavras soltas, sem nexo, ora contava
histórias de índios gigantes saídos do centro da terra, combatendo animais
imensos. De um mar que ia até às montanhas, deixando lá em cima uma tribo
escolhida, aonde as enchentes não chegavam.
Falava do mar. Da busca das coisas que
ninguém vê, e de sua boca saíam algas e corais, para deslumbramento das
crianças. Tentava mostrar que o ir e vir das ondas, no seu vestir e despir
praias era uma forma de mostrar a diferença entre estar vestido e estar nu.
A velha índia falava a linguagem dos
homens brancos; utilizava o mesmo vocabulário e isso mais do que a loucura, assustava seus
irmãos, seu povo. Justamente ela a única
que nada assimilara dos brancos.
Todas as manhãs ela voltava à praia.
Ficava horas e horas apanhando estrelas do mar. Horas e horas com elas entre os
dedos endurecidos, isolada de tudo – em um outro universo.
Preocupados, procuraram mantê-la
afastada da praia. Talvez do mar viesse aquele mundo de miragens que nem eles
conheciam. Talvez de lá viesse o perigo.
Mas ela burlava a todos e fugia antes de o sol nascer. Recolhia suas estrelas
no samburá e, à tarde, antes do sol-posto, ao mar retornava. De longe a viam, a
imagem vermelha confundindo-se com o fim do dia. Fez isso durante muitos meses,
até que todos se acostumaram e não mais a impediram de sair.
Uma tarde, porém, perceberam que
voltara um pouco adoentada e não a deixaram voltar à praia. Quem sabe um
princípio de pneumonia. As outras mulheres foram lhe fazer companhia. Muito
agitada, ela tentou de todas as formas explicar às outras a necessidade de ir à
praia, mas nenhuma cedeu. E ela, andando de um lado para o outro, embora
doente, não conseguia dormir.
Depois de muito se exaltar, de muito se
desesperar, sentou-se e esperou.
O vilarejo viveu três dias de
escuridão. O medo das chuvas voltou. O chumbo das nuvens pesava tanto que
parecia querer rompê-las, desabando sobre as ocas.
O desespero da índia aumentava. Os
olhos vermelhos de não dormir. A vigilância se revezando. Por fim, agarrada ao
samburá, entre o cansaço e a debilitação, ela adormeceu.
Na oca só se ouvia o seu ressonar. Em
volta, todos os outros velavam seu sono. Ali permaneceram e depois de algum
tempo perceberam que o céu se tornava mais e mais escuro.
A noite chegou e, com ela, um vento
escuro passou por entre deles. O sono da
índia cada vez mais agitado. As mãos movimentavam-se no vazio, procurando.
O mar cavalgava o branco de suas ondas
e vinha até às mulheres no cheiro de maresia, salgando olhos, gargantas e
almas. Exigência marinha cobrando, trazendo ameaças: não pagassem e ele
invadiria a vila, cobrindo vidas e pertences.
Junto com um ruído mais forte, o
samburá se abriu e, diante das mulheres atônitas riscos de luzes cortaram a
escuridão saindo pela porta de entrada. O céu abaixou-se para colher essas
luzes, tão grande era a distância e a urgência e tão curto o tempo.
E todos viram quando o mar pouco a
pouco se acalmou, o céu cobriu-se de estrelas, e o rosto da velha índia
adormecida tornara-se tão belo como jamais alguém haviam sonhado.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro.
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