quarta-feira, 5 de outubro de 2011







Volta ao passado


* Por Mara Narciso

Os enredos da novelista Janete Clair eram dramáticos e fizeram história. No trailer da nova novela “A Vida da Gente” uma moça solteira tem um filho no exterior e a mãe dela assume a maternidade. No Brasil de hoje um fato desses não mais causa rejeição social.
O centro das histórias do passado girava em sentimentos como amor, ódio, ciúme, e inveja, e a virgindade e o sexo extraconjugal eram assuntos demolidores da reputação. Casamentos falidos rastejavam por décadas e casais, em quartos separados, se odiavam e mal se olhavam, sendo obrigados, pela força da lei, a não se separar. Em nome dos bons costumes, pais jogavam na sarjeta filhas “perdidas” e seus netos. Esse gesto era do bem. Virar o rosto às pessoas que não seguiam o figurino tradicional era costume estimulado. Havia a figura da moça de família, nascida para casar, da esposa amantíssima, e do outro lado a “solteirona” e a “mãe solteira” e outros termos depreciativos.
A Igreja há 50 anos orientava para deixar morrer mãe e filho caso uma mulher casada engravidasse, e tivesse de ter uma terceira cesariana. Quem desobedecesse estaria pecando. A função do sexo era a procriação. Num casamento no qual a agressão física tivesse acontecido, era para a mulher ferida voltar para casa e esquecer.
Os hábitos mudaram, a lei do divórcio chegou em 1977, as pessoas se casam ou não, se separam ou não. O número de filhos reduziu-se drasticamente, e há quem não os queira ter. Os relacionamentos são sem compromisso e pouca gente acredita no amor, nos sentimentos de doação desinteressada, porque quase tudo tem um valor de mercado.
Em 2011 os jovens ficam, beijam na boca de muitas pessoas numa única festa, o sexo acontece no primeiro encontro, ouvem-se pessoas falando, às vésperas do próprio casamento: “se não der certo eu me separo”. Homens e mulheres, decididos a não ter filhos, são submetidos à esterilização cirúrgica pré-nupcial. A pílula anticoncepcional é iniciada cada vez mais cedo. Adultos sem um par são olhados com desconfiança. O sexo, motivo que levava aos casamentos no passado, banalizou-se. Poucos jovens adultos, por questões religiosas, casam-se cedo para evitar o sexo fora do casamento. A virgindade é considerada um valor a ser conservado por um número cada vez mais reduzido de pessoas.
A paixão na idade madura é rara, pois até mesmo os jovens, que já foram sonhadores em tempos antigos, com os atuais costumes do tudo rápido e superficial não acreditam em mais nada. Acontecer o amor é fato que merece comemoração. Então, quem conseguiu conhecê-lo precisa se apressar, antes que ele desapareça.
O casal maduro se reencontra depois de décadas. Foram amigos de infância. Recomeçam a amizade do ponto em que tinham parado. Desde o começo sabem que são opostos em suas crenças. Ela separada e de esquerda, a favor do direito ao aborto e da eutanásia, e não tem religião. Ele usa aliança de casado, é católico ortodoxo, membro da TFP – Tradição Família e Propriedade, e por tudo isso, está convencido dos dogmas católicos de que “o que Deus uniu o homem não separa”.
Com tantas diferenças, foram justamente elas que os atraiu. A interação, interesse mútuo e trocas que conseguem ter surpreendem aos dois. As falas são longas, e cadenciadas. A necessidade de contar e de ouvir o que o outro diz, como que por música, mostra o magnetismo entre essas duas criaturas. O que deveria dar errado dá certo em entendimento e aceitação. A atração física é despertada bem depois. O amor surge intenso e de forma mútua, e chegam a trocar suaves e tímidos carinhos. “Ele é casado, eu sou a outra na vida dele”, são versos que vêm à mente dela. Mas tal não se concretiza. Nada acontece entre eles. Embora ela tivesse esperança de os pensamentos dele mudarem, não é possível modificar um dogma de décadas. É preciso abortar o sentimento bilateral. É necessário que se afastem. É um amor tão impossível quanto uma mulher apaixonar-se por um padre há cem anos.
Caso fosse numa novela de hoje, para voltar ao tema inicial, causaria revolta na audiência, que fugiria, pois o amor não pôde acontecer, e espanta pelo inesperado.
Ela encerra a conversa com um torpedo, que ele aceita: “Estou destroçada. Preciso deletá-lo, senão morrerei. Faço isso agora para me preservar e deixá-lo livre com as suas convicções. Choro não mata. Amo você! Adeus!”

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

4 comentários:

  1. Muito bacanas e oportunas estas comparações entre a forma que era e o jeito que é hoje. Aliás, isso dá assunto pra uma ótima série de textos. Fica a sugestão, Dra. Mara. Um grande abraço e parabéns por mais este.

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  2. Marcelo, ontem não consegui entrar em nenhum blog do Blogspot, mas hoje sim. Não sei o que houve. No texto, o que surpreende é o fato de pessoas apaixonadas, o que é raro, abortarem a paixão em nome de convicções religiosas. Isso ainda existe. Obrigada por comentar e aceito a sugestão. Vou tentar fazer outros paralelos.

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  3. Legal sua abordagem a respeito dos costumes... Sobre o tema da novela, foge muito à realidade atual. Espero que não mais aconteçam casos como o da mocinha da novela...
    Abraços.

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  4. Marleuza, o que aconteceu nos costumes nos últimos 40 anos foi uma revolução. Isso para abordar apenas o período de Janete Clair para cá. Obrigada por comentar.

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