terça-feira, 18 de outubro de 2011







Apartamento 105

* Por Fausto Brignol

Não, não acreditei quando vi pela segunda vez aquele rosto largo me cumprimentando. Palavra que não acreditei. Ou, por outra, tinha que acreditar: ali estava ele, sorridente, olhos azuis enormes, irônicos...

Pensei primeiro: vou virar o rosto, fingir que não vejo. Mas em seguida me dei conta do absurdo de tal atitude. Talvez fosse justamente o sinal que esperava. Era inevitável que o olhasse, cumprimentasse, tomasse meu café e fosse embora. Era inevitável que, enquanto tomava meu café, ele ficasse me olhando e eu a ele - como dois cavaleiros prestes a quebrar lanças. Era inevitável que eu derramasse café no balcão - pois não se pode, ao mesmo tempo, cuidar o inimigo, tentar acender um cigarro e beber o café. E ele ali, impávido, não tão colosso assim, mas, enfim, impávido, esperando a falha, o descuido, e sempre sorridente: “não quer usar meu lenço, amigo?”.

Não quis, é claro que não quis.

Já desde ontem eu sinto que não é apenas ele, o homem do café, que me olha como quem diz “eu sei, te conheço...”. Não foi por acaso que vieram me entregar a roupa da lavanderia. Aliás, um sujeito também sorridente, também de olhos azuis, dizendo com aquele característico tom servil: “a sua roupa, senhor”. E eu espantado com a minha roupa - um smoking e duas camisas sociais de seda - quase a recebendo, quase dando gorjeta ao entregador, quase agradecendo pela entrega. Eu, que nunca tive um smoking, jamais uma camisa de seda, ali, espantado. “Mas este não é o apartamento 105, senhor?”.

Parece que todos estão sabendo onde moro. E de meus hábitos, vícios e costumes.

Hoje de manhã resolvi dar uma volta por um bairro até então desconhecido para mim, e, ao entrar num bar para comprar cigarros, o caixa foi logo me entregando um maço - antes mesmo que eu o pedisse. O ato foi tão espontâneo que não me surpreendi. Somente agora, ao unir os fatos, ao remoer tudo o que tenho feito nestes últimos três dias, é que me dei conta que o caixa do bar também tinha rosto largo, olhos azuis e sorriso irônico.

Quando decidi tirar tudo isso a limpo - pois não sou homem de deixar acontecer - percebi que eles estavam me esperando. Que sabiam que eu ia sair e o momento de minha saída. Desde o primeiro passo fora de minha porta senti estar sendo vigiado.

Primeiro foi aquele garotinho que brincava de skate no corredor do edifício. Um garotinho de cara larga, olhos azuis e óbvio sorriso irônico, que me cumprimentou: “oi, tio!”. De onde teria saído? Foi o suficiente para que eu me resolvesse abordar a vizinha da frente, obrigando-a a contar tudo. Até ela parecia que sabia que eu iria bater na porta da sua casa: por mais que eu batesse, não apareceu ninguém - embora eu não precisasse chegar muito perto para perceber as risadas abafadas do outro lado da porta.

Resolvi, então, que no café ou no bar deveria encontrar a solução, ou, pelo menos, uma explicação satisfatória. Mas não pude nem sair do edifício. No térreo, um porteiro novo - cara larga, olhos azuis, sorriso irônico - me preveniu: “parece que vai chover, senhor”.

Ignorando-o, tentei sair à rua e lá estavam eles. Nunca poderia imaginar que eram tantos.

Uma multidão que aparentava apenas tratar de seus próprios assuntos. Roupas as mais diversas, andares os mais estranhos - mas com a mesma expressão nos olhos azuis e no sorriso irônico estampado em todos aquelas caras largas, que, aos poucos, foram-se transformando em uma única e compacta cara larga, em um único e petrificado sorriso irônico, em dois imensos olhos azuis que me empurraram de volta escada acima, escada acima.

Senti que queriam me atropelar, me esmagar de vez, e foi o quanto deu para entrar no meu apartamento, resfolegando. Fiquei por muito tempo com o rosto colado em minha porta, como se quisesse ouvir meus próprios segredos... Esperando. Quando ouvi os primeiros passos no corredor comecei a recuar instintivamente, mas os primeiros passos passaram.

Tranquei tudo. Estou trancado e retrancado. Jamais sairei daqui. Resolvi tomar meu último café, fumar meu último cigarro. Depois, não sei o que acontecerá. Só tenho uma certeza: eles virão. Mais cedo ou mais tarde. Não sei se poderei encará-los novamente. Eles conseguiram todos os trunfos, mas esta última vitória eu não lhes darei: a de verem minha bela, única e perfeita cara, larga, pois tenho testa larga; olhos azuis únicos e um sorriso que alguns dizem irônico, mas que eu sei que é meu. Somente meu.

• Jornalista e escritor.

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