quinta-feira, 27 de outubro de 2011







Ilustração: Thiago Cayres

Relatos literais: cor de burro quando foge

* Por Marcelo Sguassábia

Reconheço de antemão que a comprovação de qual seja fielmente a cor do burro foragido continuará sendo uma das grandes interrogações do homem contemporâneo, de demonstração tão complexa quanto o último teorema de Fermat. Não é justo, entretanto, que me furte a trazer aos cativos deste espaço dois experimentos que se propõem, cada qual a seu modo, a elucidar a questão e quiçá lançar uma pá de cal sobre o assunto. Julgo, todavia, que ambos nunca estiveram tão longe da verdade, como perceberá o leitor no breve relato que se segue.
O primeiro é um tanto quanto frágil no tocante à metodologia científica adotada, pois se baseia meramente na acuidade visual dos investigadores.
Sustenta este grupo de nefelibatas, composto por pesquisadores do Alabama, que o ato da fuga enrubesce o animal devido ao esforço físico exigido, o que confere momentaneamente ao mesmo uma coloração que varia entre o rosado e o vermelho-vinho, passando pelo magenta queimado. Esta elástica paleta de cores, convenhamos, continua a deixar a questão sem resposta. Vale notar que argumento semelhante rendeu defesa de tese há cerca de 12 anos na Universidade Quincas Borba, cuja banca examinadora era encabeçada pelo laureado professor Demóstenes Benz, sobrinho-neto da mundialmente famosa Mercedes. A discutível validade dos achados, somada à suspeita de plágio que paira sobre os autores, me autoriza a desconsiderar a pesquisa na fundamentação de qualquer investigação rigorosa que se empreenda sobre o tema, aqui ou no exterior.
O segundo experimento levanta a hipótese de que a cor do burro em desabalada carreira se manifestaria em sua epiderme. Sendo o bicho coberto por espessa pelagem, seria logicamente impossível um flagrante fidedigno. Assim, procedeu-se à realização do teste em uma área previamente raspada, próxima à crina do quadrúpede.
Expoentes diversos do setor de medicina veterinária julgaram o resultado cromático obtido na empreitada como inconclusivo, uma vez que refere-se especificamente a um burro estudado, e não ao conjunto de burros fugitivos espalhados pelo planeta. Argumentaram que a amostragem só ganharia lastro científico se contasse com pelo menos cinco grupos de controle, formados por burros de cada um dos cinco continentes.
Outras contundentes objeções também não faltaram a este estudo, consideradas impeditivas para a exatidão dos laudos apresentados:
• O grau de inclinação do terreno onde se realizou o galope;
• A natureza do solo, sua porosidade e o coeficiente de resistência entre este e as patas do animal;
• A quantidade de feno consumida desde a véspera pelo burro-cobaia, bem como o total de líquido ingerido e o número de horas dormidas na noite imediatamente anterior aos testes;
• A raça, a idade, o peso e as variantes de temperatura, pressão arterial e batimentos cardíacos do dito cujo.
Finalizando, podemos categoricamente afirmar aquilo que já tinha-se como comprovadamente constatado, ou seja, a cor de burro quando foge é da cor do burro quando foge.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

2 comentários:

  1. Pelo que sei, caso possamos complicar, para que descomplicar? Essa cor faz parte dos ditados errados que vão se entranhando na mente do povo e o errado vira certo. Os manuais de cultura inútil garantem que o correto é "corro do burro que foge", no intuito de não levar um coice ou mordida. A sua explicação é bem mais interessante, Marcelo.

    ResponderExcluir
  2. Aqui no popular se diz com a roupa suja: "Cor de burro quando foge"!

    ResponderExcluir