quarta-feira, 26 de outubro de 2011



Que sujeito complicado!

O
escritor russo, Fedor Dostoievski, foi um inovador na literatura. Isso é ponto pacífico e sequer é novidade para ninguém. Seu talento e sua importância são inquestionáveis. Seus livros, hoje, são clássicos e permanecem com toque não apenas de originalidade, mas de modernidade, porquanto os personagens que criou não são somente russos, e nem apenas de fins do século XIX, mas são universais e atemporais. Podemos encontrá-los, ainda hoje, em qualquer rua das grandes cidades, mundo afora.
Todavia, analisando sua biografia, não posso deixar de constatar, e de exclamar: “Que sujeito complicado foi esse Dostoievski!”. Claro que suas tantas contradições e as inúmeras bobagens que fez ao longo da vida, não diminuem em nada sua importância literária e nem seu enorme talento. Desconfio que, provavelmente, até, os aumentem. Refletem, sobretudo, sua humanidade. Mostram que foi uma pessoa como todos nós, cheio de defeitos, de dúvidas, de tentações, de erros de escolha, de contradições e de fracassos pessoais.
Em textos anteriores vimos como escapou, por exemplo, em cima da hora, da morte, por fuzilamento. Mas levou um susto daqueles, com a simulação da sua execução!. Amargou um exílio, de pouco mais de quatro anos, em um campo de trabalhos forçados na remota e inóspita Sibéria. Lá, teve a oportunidade de conhecer melhor como o ser humano se comporta em situações adversas. Um fato, em particular, surpreendeu-o bastante e decepcionou-o. Foi a constatação de que, na prisão, existiam as mesmas diferenças sociais, o mesmo e odioso sistema de castas, de divisões, que havia observado fora dela e lutado contra.
Os camponeses, por exemplo, desprezavam os intelectuais, em vez de aprenderem com eles. Riam, sobretudo, da sua falta de habilidade na execução de trabalhos braçais, que requeriam força física e destreza muscular. E estes não escondiam o desprezo por aqueles homens brutos e ignorantes, beberrões inveterados e sumamente supersticiosos.

Certa ocasião, Dostoievski tentou participar de um protesto contra a má qualidade da alimentação fornecida aos prisioneiros. Seus companheiros de infortúnio, no entanto, recusaram sua adesão, argumentando que o escritor não tinha motivos para participar das manifestações, já que comprava a própria comida. Como ele insistisse em protestar, os camponeses quiseram saber o por quê da insistência. “Por solidariedade”, ele respondeu. E a resposta foi acolhida como se fosse anedota, já que os manifestantes argumentavam que intelectuais jamais se solidarizavam com camponeses, a menos que pretendessem tirar vantagens deles.
Tudo o que o escritor passou, naqueles tempos amargos e duros, serviu-lhe de inspiração para um dos seus melhores e mais célebres livros: “Recordações da casa dos mortos”. Cumprida a pena, todavia, Dostoievski não assumiu, de imediato, o comando da própria vida. Nem poderia. Libertado, em 1854, foi condenado a uma pena suplementar: deveria cumprir mais quatro anos de serviço militar, no Sétimo Batalhão. Não foi destacado, todavia, para algum quartel de Moscou, de São Petersburgo ou de seus arredores. De jeito nenhum! Foi enviado para a longínqua e solitária Fortaleza de Semipalatinsk, no distante Cazaquistão.
Quando afirmo que Dostoievski era um sujeito complicado, até que sou muito complacente. Era, sobretudo, contraditório. Querem ver uma de suas contradições? Ele foi preso por integrar um grupo contrário ao regime autocrático do czar. Passou pela tortura de simulação de pena de morte. Permaneceu exilado por quase cinco anos na Sibéria e por mais quatro de serviço militar no Cazaquistão. Era de se supor, portanto, que odiasse o monarca russo. Nada mais enganoso.
Conforme lembra Bóris Schneiderman, num brilhante ensaio sobre o escritor russo, Dostoievski tornou-se apaixonado defensor do czar Alexandre II, cuja reforma incluiu a libertação dos camponeses, pondo fim ao regime de escravidão disfarçada, branca, quase que ao mesmo tempo que a Princesa Isabel libertava os escravos negros do Brasil. No meu entender, essa contradição somente mostra seu elevado senso moral, sobretudo de justiça. Era a postura de um homem que sabia mudar de opinião quando convencido de que a que nutria estava errada.
Querem outra contradição de Dostoievski? Pode-se citar sua ambigüidade em relação ao dinheiro. Tinha uma repulsa natural por ele, por entender que se tratava do grande fator de corrupção da alma humana. Todavia, simultaneamente, sentia um, irresistível fascínio por esse símbolo de riqueza e, consequentemente, de poder. O crítico Paulo Bezerra observa a propósito: “Havia em Dostoievski um sentimento ambíguo em relação ao dinheiro, uma atração irresistível e ao mesmo tempo uma repulsa. Ele via no dinheiro um fator de destruição do psiquismo humano”.
Bem, não posso criticar o escritor russo, nesse aspecto, pois essa é exatamente a minha postura pessoal nesse assunto. Aliás, é um dos pontos em que sou mais criticado. Sinto profunda repulsa pelo dinheiro, pelo tanto que corrompe as pessoas. Todavia, sei que, sem ele, não terei acesso sequer aos bens essenciais para a simples sobrevivência, quanto mais para uma vida razoavelmente confortável e digna.
Querem outra trapalhada desse personagem genial, posto que tão humano? A dos seus “amores” ou, mais precisamente, dos seus relacionamentos conjugais. Em 1857, por exemplo, para surpresa dos parentes e amigos, casou-se com Maria Dmitrievna Issaev. Tratava-se de uma viúva, de temperamento forte e de difícil convivência. Além disso, tinha um filho de oito anos de idade. E mais, era doente, tinha tuberculose. Esse casamento infeliz e tormentoso durou sete anos.
Dostoievski, porém, não foi fiel à mulher. Em 1862, conheceu Polina Suslova que, como garantem seus biógrafos, foi o seu grande amor. Mas não se casou com ela. Por que? Vá se saber! Ficou viúvo em 1864 e nesse mesmo ano rompeu o relacionamento com Polina. Três anos depois, em 1867, casou-se com Anna Snitkina, com quem permaneceu casado pelo resto da vida. Tenho, pois, ou não tenho razão quando afirmo que Dostoievski foi um sujeito complicado, e mais do que isso, foi um tremendo trapalhão?!

Boa leitura.

O Editor.



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Um comentário:

  1. Os gênios num item, podem não sê-lo em outro. E assim colecionam incompreensões.

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