quarta-feira, 26 de outubro de 2011



Umbral

* Por Fausto Brignol


- O que é isto? O que estou fazendo aqui? Onde estou?

- Hahahaha!!!

- Só o que me faltava! Uma gargalhada lúgubre.

- Assustei você?

- Ah, olá, quem é você? Quase me assustou.

- Confessa que eu assustei um pouquinho.

- Tá bem, mas só um pouquinho. Quem é você? O que é isto aqui?

- Eu não sou. E isto aqui você pode chamar de limbo, se quiser...

- Você não é?! Limbo?! Eu estou sonhando, não é?

- Na verdade, não. Mas você já sonhou muito, hehehe...

- Pô, mas você gosta de rir, hein? Que mania... Você é um chato. Dá pra largar do meu pé?

- Hehe, não posso largar do seu pé. Você não tem pé, que eu veja.

- Então pára de rir toda hora! Como não tenho pé?!

- É que você é muito sério, e alguém aqui tem que rir, quer dizer, eu sou esse alguém, hehe...

- Tá bom, mas porque você falou em limbo? Tá querendo brincar comigo? E porque eu já sonhei muito?

- Tô querendo brincar, claro. Mas, sem brincadeira, aqui é o limbo. Se preferir, escolha outro nome. E você já sonhou muito enquanto era viv...Oooops! Foi mal...

- Quê! Tá querendo dizer que eu morri?

- Desculpa, foi mal, não era pra te dizer ainda. Erro meu. Fui muito brusco, tinha que ser aos poucos para que você não sofresse. Mas, enfim, é isso aí: você morreu.

- Morri mesmo? Bem que eu já tava desconfiando... Confesso que não fiquei muito triste, não. Se é verdade que eu morri é até um alívio. Não agüentava mais aquela CTI, cheio de dor, todo entubado...

- Você não ficou assustado? Nem triste?

- Meio que um pouco; mais pra triste que assustado. A gente não vive uma vida inteira pra depois morrer e não sentir nada. Afinal eu sou humano, tenho sentimentos.

- Pois é, não sei como lhe dizer, mas você não é mais humano nem tem sentimentos; você apenas lembra que foi humano e teve sentimentos.

- Péraí! Tá me chamando de insensível? Eu sinto, logo existo. Sei o que estou dizendo: tenho sentimentos, sim.

- Correção: você ainda tem sentimentos; ainda é um pouco humano e sente como um humano, mas, aos poucos, tudo isso vai passar, não se preocupe.

- Me preocupo, sim! Não quero deixar de ter sentimentos.

- Deixa eu explicar melhor: você ainda tem a lembrança dos sentimentos, da sensibilidade, mas, aos poucos, tudo isso vai passar porque você está de passagem aqui. Como eu disse, aqui é o limbo.

- Essa é boa! Você daria um ótimo retórico. Limbo? Isso é coisa de Igreja Católica. Olha, não vem com essa, que eu sou ateu. E depois, me ensinaram que limbo era para as crianças que não tinham ainda pecado. Conta outra.

- Era só o que me faltava! Você é ateu! Se você fosse crente, seria bem mais fácil de lidar. Era só dizer que aqui é o limbo, que depois passaria pelo purgatório para purgar alguns pecadinhos e que, ainda depois, iria para o céu ver a face de Deus e ouvir a harpa dos anjinhos eternamente. Mas ateu! A minha missão fica um pouco mais difícil.

- Missão? Afinal, quem você é?

- Como eu disse antes: eu não sou. Já fui e poderei ser, mas, agora, não sou.

- Não é? Mas como é que eu estou vendo você e conversando com você?

- Vendo? Conversando? Você tem certeza? Olhe bem para mim e diga o que você vê.

- Bem, olhando assim, pensando bem, eu não vejo nada, nada que me lembre de alguma coisa que eu conheça, apenas um pontinho de luz, às vezes fica maior, às vezes fica menor, mas só luz... Que estranho...

- Viu? Quero dizer, percebeu? É assim que você vai parecer depois que passar por aqui.

- E como é que eu pareço agora?

- Você ainda parece com você, por enquanto. Mas não exatamente: uma sombra, mais para fantasma do que para sombra. Mas não me assusta, hehe! Você é a projeção de suas próprias lembranças sobre si mesmo.

- Um pensamento bem estruturado, mas não me convence.

- Por quê?

- Se eu sou um fantasma, ou quase isso, como é que estou ouvindo você sem tímpanos; falando sem cordas vocais, pensando sem cérebro e vendo sem olhos?

- Você é bom mesmo! Gostei do argumento. Mas taí uma coisa que não sei lhe responder. Também eu me pergunto sobre isso.

- Como assim? Você não é o meu espírito guia, ou coisa parecida?

- Engano seu. Como eu lhe disse, eu não sou.

- Bem, pelo menos você é uma espécie de luz, alguma coisa que eu vejo, e se é assim, você é.

- Malditos os ateus e seus argumentos lógicos! Perdão! Peço perdão por ter dito aquela palavra.

- Que palavra?

-“Malditos”... Eu não deveria...

- Tudo bem, eu não me importo. Você até me pareceu mais normal quando gritou aquilo.

- Mais normal... Talvez, sob o ponto de vista humano, e você é ainda quase humano, mas há a lei da correspondência, a lei do Karma. Tudo o que fazemos, pensamos e dizemos volta com mais força ainda. É por isso que eu estou nesse vai e vem. Você até já me vê como luz, mas volta e meia eu me exacerbo e perco a paciência.

- Viu? Você mesmo disse – “perco a paciência”. Logo você é.

- Não. É por pensar assim que ainda estou aqui, marcando passo. Quando penso em mim individualmente, como se eu fosse um ser e tivesse até um nome. Mas eu só sei que nada sou, embora me seja ainda custoso pensar assim. Aceitar este meu não ser. Mas não estamos aqui para falar de mim, mas de você. Resumo da ópera: você morreu, está aqui de passagem e terá de enfrentar algumas provas se quiser evoluir e ascender de seu atual estado.

- E quem disse que eu quero “evoluir”, ou “ascender”? Eu tô é curioso.

- Mas você não está pensando que vai ficar sendo eternamente aquela pessoa que você era.

- Eu bem que gostava de mim. Isto é, gosto ainda.

- Você é muito acomodado! Lembra de você naquele hospital, com todos aqueles tubos pelo corpo, sem nem sentir mais tesão nem prazer nenhum. E quer me dizer que gosta daquilo?

- Claro que não! É até um alívio... Mas eu gosto do meu universo mental. E é isso que eu chamo de “eu”.

- Você quase acertou. O Universo é mental, mas não é você.

- Como não, se sou eu que estou pensando?

- Você pensa que está pensando.

- Não entendi.

- Finalmente! Até que enfim um pouco de humildade. Você confessa que não entendeu. O “seu” universo mental não é tão grandioso assim, não é?

- Eu só quero saber porque é que você afirma que o Universo é mental.

- Não posso lhe responder.

- Ah, então você também não sabe. Não sabe nem o que está dizendo.

- Eu não disse isso. Mas você é que terá que descobrir.

- E como eu vou descobrir?

- Terá de passar pelo umbral.

- E onde fica esse tal de umbral?

- Aqui.

- Como, “aqui”?

- Aqui é aqui.

- Mas aqui em que lugar, em qual espaço, onde?

- Não há espaço nem tempo nem movimento ou ausência de movimento. Não há acima ou abaixo, ou lado. Não há matéria ou espírito, tudo é.

- Como assim?

- Assim. Simples. Tão simples que parece muito complicado, confesso que eu digo isso porque alguém me disse. Na hora eu entendi, mas sempre que penso em mim individualmente, eu acho muito complicado acreditar nisso. Mas você já está me sentindo como luz e não como um ser individual. Significa que alguma coisa melhorou em mim. Eu já não sou tão “eu”. Foram tantas as vezes que eu tive que enfrentar aquele umbral, e tantas as vezes que eu voltei de lá...

- Mas como se enfrenta o umbral? E por quê?

- Você tem a escolha de não enfrentá-lo. Aliás, você tem todas as escolhas. Enquanto você é sombra, ou fantasma, ou o nome que preferir... Enquanto está nesta passagem, neste aparente limbo, você tem a escolha. Poderá não fazer nada e se dissolverá na eterna inconsciência. Mas poderá decidir-se a enfrentar o umbral.

- Mas o que é esse umbral?

- Não posso lhe dizer. Apenas posso lhe indicar o que fazer para enfrentá-lo.

- E o que eu devo fazer?

- Apenas feche os olhos, procure não pensar em nada e deixe acontecer.

- Não pensar em nada é muito difícil.

- Eu sei. Extremamente difícil. Mas quando nos decidimos a fazer uma determinada coisa ela é feita, ela acontece. É só uma questão de vontade. Decida-se a não pensar em nada e acontecerá.

- Mas você... Você me disse que já enfrentou o umbral várias vezes e voltou. Como é?

- De cada vez é diferente. Da primeira vez era como se fosse uma infinidade de espelhos a me refletir, mas eu não estava lá, eu não me enxergava. Foi doloroso, porque tudo o que eu queria era me ver em algum daqueles espelhos. Quando me dei conta, estava de volta.

- E depois?

- E depois percebi que a minha sombra, o meu fantasma, ameaçava se diluir e tive que voltar para evitar que isso acontecesse. Voltei infinitas vezes.

- E agora?

- Agora eu já aprendi que devo me diluir, diluir-me em luz, participar do Todo. Ser Nada no Todo; ser Tudo no Nada. Só falta uma coisa, um detalhe para que isso aconteça.

- Qual?

- Feche os olhos e sinta a minha luz.

- Assim?

- Assim.

Conto extraído do Blog do Fausto Brignol – HTTP://fausto-diogenes,blogspot.com

• Jornalista e escritor.

2 comentários:

  1. Belo texto, mas não quero passar por esses
    questionamentos tão cedo. Ainda estou aprendendo a lidar com as perdas...

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  2. Uma boa ficção sobre como deverá ser a realidade pós-morten.

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