quinta-feira, 27 de outubro de 2011







O homem do contra

* Por Gustavo do Carmo

No berçário da maternidade, entre dezenas de bebês, alguns chorosos, outros famintos, boa parte dorminhoca, o destoante corpo gorducho de Concórdio era o único que se aventava no lado oposto do berço.

Concórdio levou quase dez meses para nascer. Fez sua mãe tirar licença-maternidade aos cinco de gravidez porque sua barriga já parecia ter noventa dias a mais. Dona Linda foi internada no sexto mês porque o menino estava tão grande que poderia nascer, prematuramente, a qualquer momento. Demorou três semanas além dos nove meses normais. Veio ao mundo no meio de um engarrafamento. Do hospital para casa.

Sim. Do hospital para casa porque sua mãe tivera alta, horas antes, por causa da demora do parto. O plano de saúde dos seus pais não queria pagar mais uma semana de internação. Ela já estava há quase quatro e nada do bebê nascer. Só para contrariar, a bolsa estourou no meio do trânsito.

O parto foi feito pelo próprio pai que, horas antes, reclamava, mal-humorado, do trânsito tão ruim que desejava estar num concorde. Querendo brincar com a situação, Seu Almir decidiu homenagear o avião supersônico e o batizou de Concórdio Diverges da Silva.

Apesar do hipotireoidismo com o qual nasceu e de ter emagrecido bastante com o tratamento, Concórdio cresceu saudável. Mas, aos cinco anos, já tinha as suas próprias opiniões. Só aceitava ordens dos pais quando eram necessárias para a educação. Era uma das poucas crianças que adorava comer verduras e legumes. Praticamente a única que não gostava de ganhar brinquedos. Pedia roupas e livros de presente.

Nas brincadeiras com os amiguinhos, sempre inventava uma coisa para discordar. Era chamado de chato. Na escola, costumava questionar as explicações da professora. Principalmente nas aulas de história. No teatrinho infantil, falava diálogos que não estavam no roteiro.

Quando chegou ao segundo grau, seus colegas organizaram uma passeata para derrubar um presidente da república. Concórdio se recusou a participar. Era o único contrário ao impeachment. Foi vaiado por todos. Mas não se importou com isso.

Filho de um casal de advogados, neto de juízes e sobrinho de procuradores, Concórdio decidiu cursar medicina. Apesar de não concordar em participar do trote e do chopp com os amigos no bar da esquina, o jovem enturmou-se facilmente com os colegas. Logo entrou no conselho do DCE da faculdade. Mas discordava de tudo e de todos. Suas ideias revolucionárias iam sempre contra aos interesses da reitoria. Era sempre voto vencido nas reuniões deliberativas. Suas sugestões nunca eram aprovadas. Abandonou o diretório. Formou-se.

Casou-se com Duadeleine Regina, a servente da universidade, magra como um esqueleto, corcunda, dentes superiores bem pronunciados, queixos pontudos, nariz idem. As olheiras chamativas como um panda davam-lhe um aspecto sôfrego e agredido. Isso não impediu a paixão de Concórdio pela moça. Tiveram dois filhos: Concórdio Júnior e Leila Sara.

Concórdio começou a exercer a profissão atuando como residente no hospital da universidade. Mesmo tendo uma rotina de quatro horas diárias para cumprir, fazia questão de trabalhar o dia inteiro no hospital. E ainda pediu para aumentar a carga diária. Achava pouco.

Odiava concursos públicos. Não fazia nem para a sua profissão. Graduou-se em uma faculdade particular. Sempre trabalhou em hospitais privados. Ganhou experiência e se tornou um cardiologista respeitado. Integrou diversas equipes médicas. Primeiro como terceiro auxiliar. Foi subindo até chegar ao posto de chefe. Em todas as posições que ocupou, sempre discordou dos companheiros. Recusou um cargo de diretor-geral no Instituto do Coração, em São Paulo. Ganharia cinco vezes mais. Quis ficar no Rio, onde nasceu e foi eleito presidente do conselho regional de medicina.

As suas ideias contrárias à maioria se tornaram a sua marca registrada. Muitas delas ajudaram a torná-lo um homem ético. Outras geravam críticas e protestos. Ficou famoso.

Opinava sobre todos os problemas do país. Não se importava em criar polêmicas. Era contra as favelas. Não as comunidades carentes. Para Concórdio, o governo deveria dar moradia e educação em vez de incentivar as construções irregulares em troca de votos. Também não aprovava o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A natureza concebeu o homem e a mulher para a reprodução. Segundo ele, as pessoas têm o direito de obter prazer em uma relação homossexual, mas que sejam discretas. Também acredita que a sociedade está incentivando e quase impondo o homossexualismo. Repudia a violência discriminatória, mas tolera o preconceito, porque conceitos podem ser mudados. É uma característica humana.

As únicas idéias que Concórdio defendia era a prisão perpétua com trabalhos forçados e pena de morte – somente para presos de alta periculosidade – contra a violência, além do controle de natalidade e o aborto para diminuir a miséria. Ainda assim, são teorias que vão contra a igreja e a atual sociedade.

Concórdio estava consciente de que, com as suas opiniões, nunca seria eleito para nenhum poder legislativo. Tornou-se deputado federal ao herdar o mandato de um amigo de quem era suplente. Criou diversos projetos de lei benéficos para o país, mas contra os interesses de um estado democrático. Todos rejeitados. Ao votar nos outros projetos, era sempre vencido. Como nos tempos do diretório estudantil da faculdade.

Somente uma vez Concórdio concordou com a maioria. Votou a favor da absolvição de um colega deputado, acusado de corrupção ativa e quebra de decoro parlamentar. Não foi chantageado e nem coagido para defender seu companheiro de bancada. Votou por amor. Amor de pai. Concórdio Júnior foi absolvido por unanimidade.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

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