sexta-feira, 28 de outubro de 2011







Descomunicação

* Por Lêda Selma

Tudo começou ainda na infância. O menino não tinha sossego. A tosse chegava num rompante. Já dizia sua trisavó: “Mais vale uma má esperança que um bom desengano”. Apoiada nisso, capturou um peixe, cuspiu em sua boca e o devolveu ao rio, vivo, como mandava o ritual; outra vez, escreveu a Ave-Maria num papel, introduziu-o no patuá e o pendeu no pescoço do cachorro; ali ficaria até que o coitado se libertasse dele naturalmente. Todavia, a mais estapafúrdia das doidices, com o fito de acabar com aquela tosse ladrante, foi colocar o menino para tossir no ouvido da imagem de São Braz: desassossegando o santo, ele haveria de milagrear em favor do filho, acreditava. Por analogia, deduziu: se o santo era especialista em engasgo, entenderia de tosse convulsa, a tal tosse comprida, afinal, eram áreas afins, meio aparentadas.

A palavra de ordem, portanto, para aquela desesperada mãe, “tentar”. Sem medidas. Sem economia de sacrifícios. Tudo valia a pena se a tosse não fosse pequena (desculpe-me o trocadilho, Fernando Pessoa). O filho precisava se livrar daquele “regougo infernento”. Se necessário fosse, flagelaria São Braz ou qualquer santo, sem misericórdia, até que agissem de forma competente.
Alguns meses corridos, e a tosse, já nem tão comprida, se espaçava e, aos poucos, enfraquecia-se. O menino, apenas, vez ou outra, tossicava, “tossinha de cemitério”, afirmava a vizinha. E a mãe comemorava seus feitos com preces de gratidão. A coqueluche, finalmente, estava derrotada em tempo recorde.
Passaram-se os tempos, o menino cresceu, virou homem, um homem atarracado e franzino, de pele bacenta e cabelos esporádicos (modelo nem ficam nem desocupam a telha). De repente, ei-la, a tosse, ressurgida com novo status: bronquite asmática. “Culpa da tosse comprida mal-curada”, retumbava, incansável, a avó. “Nem tudo foi feito. Faltou cortar um pedacinho da parte branca da pena do urubu, introduzi-la num amuleto e pendurá-lo no pescoço do coqueluchento”, resmungava insistentemente. O certo é que a tosse, de volta, não dava trégua àquele homem de olhar vermelho, olhar de meu Deus, cadê meu fôlego?! E era justo aí que estava o problema: no fôlego. Um fôlego cambaleante, raquítico, feito bêbado à mercê da intuição para encontrar o caminho de casa. Um fôlego de deixar qualquer um sem fôlego.
Ano após ano, Troncoso continuava com crises de asmas, cansaço e falta de ar. Aos arrancos, a tosse não o deixava dormir. Uma consumição dividida com a mulher que, conforme prometeu ao marido, instigada pelo padre, no dia do casamento, lhe seria “fiel na saúde e na doença”. Casada, pois, em comunhão também de tosse, fazer o quê, senão uma simpatia? Colheu, então, um punhado de alecrim, deixou-o secar e, depois, amassou-o. Em seguida, colocou-o em um cachimbo virgem. Cada vez que a asma se manifestasse, o marido tossegoso fumaria o alecrim.
Não tardou muito, o médico foi chamado; e intrigou-se com o cachimbo sobre a mesinha de cabeceira.
– Olhe, é preciso driblar o fumo. Aos poucos, o senhor se adaptará, fique tranquilo. Que tal fumar só dois por dia?
– Dois…?! Vou tentar, vai ser difícil, mas se é o doutor quem diz…
Dez dias depois, Troncoso estava pior.
– Foi complicado, doutor, mas consegui fumar os dois.
O médico, ao ascultar-lhe os pulmões, confirmou a piora.
– Doutor, acho que a culpa é do cigarro.
– Sem dúvida. Por que lhe pedi que diminuísse as fumadas?
– Diminuísse?! Fiz foi aumentar, doutor! Afinal, eu não fumava, e só fumei agora por prescrição médica, ora! troteava peito adentro, escapulia boca afora, um suplício que o sacolejava impiedosamente. Zelosa, a mãe não se descuidava: simpatias, benzeções, preces, promessas, tudo o que a fé e as crendices lhe apontavam como solução.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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