quinta-feira, 20 de outubro de 2011



Criatura recria Criador


O mito e a realidade constituem-se em tendências antagônicas (embora não necessariamente), que sempre se chocaram, através dos tempos e das gerações (e ainda se chocam) na alma do homem e determinaram sua forma de entender e de descrever o mundo. Mesmo nos tempos atuais, tidos e havidos como fundados numa suposta racionalidade, o conflito persiste. Determina linhas de raciocínio conflitantes (se levadas a extremos) e divide os filósofos em duas correntes opostas de pensamento: a materialista e a idealista. Ambas balizam, inclusive, o fundamento político contemporâneo, mediante duas ideologias opostas (capitalismo e comunismo), que há não muito dividiam as sociedades nacionais em blocos e que, quer na sua concepção de organização social quer nos objetivos a serem alcançados, se confrontavam.

A palavra “mito”, proveniente do grego “mythos”, cujo significado é fábula, recebeu, dos dicionaristas, pelo menos dez definições. Filosoficamente, o termo se refere à exposição de uma doutrina, ou de um pensamento, ou de um acontecimento de maneira figurada, imaginativa, “fabulosa”. Sua matéria-prima é a fantasia. É o fruto exclusivo da criação da mente humana. É essa capacidade, aliás, de “imaginar” que distingue esse animal complexo e contraditório dos demais, que se valem, exclusivamente, do instinto para sobreviver e não conseguem apreender, compreender e transmitir a realidade que os circunda.

O filósofo chinês, Lao-Tsé, observou que “existe o animal ainda no homem; mas não é certo que todo o homem exista no animal”. Embora ambos tenham funções biológicas às vezes assemelhadas, quando não iguais, o ser humano tem essa característica especial, privilegiada, única que o distingue das demais criaturas: a capacidade de pensar e, sobretudo, de elaborar idéias. E, através da imaginação, de “criar”.

Mediante a utilização do mito, temos a possibilidade de tornar compreensíveis conceitos bastante complexos, às pessoas de menos preparo intelectual que, de outra forma, não seriam compreendidos por elas. Jesus Cristo, por exemplo, utilizou esse tipo de símbolo, ou seja, as parábolas, para transmitir mensagens de compreensão, solidariedade, fraternidade e amor. Platão, igualmente, se valeu do mito para expressar o que intuía ser o que de mais transcendental o homem possuía: a idéia. Outros tantos sábios recorreram a esse recurso para ilustrar multidões.

O mito, em linhas gerais, é entendido, em seu sentido mais comum, como narrativa de acontecimentos “fabulosos” (ou heróicos), perdidos no tempo. Quando foi que, pela primeira vez, o homem tomou consciência de que existia, de que estava em um lugar que para ele era totalmente desconhecido (e provavelmente hostil), e passou a analisar o que via, ouvia, sentia e pensava? Provavelmente, jamais saberemos. Mas não é difícil de se intuir “como” isso se deu.

Um dos seus questionamentos, certamente, foi: quem criou este mundo imenso e tão cheio de mistérios? Outro: o por quê da alternância da luz e das trevas, do frio e do calor? E dessas perguntas, outras tantas foram surgindo, aos borbotões. Como: “o que eram aqueles pontinhos luminosos que ele via à noite no espaço?” “Por que, em determinadas ocasiões, caía água do alto e em outras não?” “Qual o processo que ocasionava um frio intenso em certo período e o renascer das plantas e das flores, com o calor, em outro, em ciclos sucessivos que se repetiam?” E, a rigor, até hoje surgem milhões e milhões, bilhões e bilhões, infinitas perguntas que carecem de resposta.

Foi para tentar responder a estas e a tantas outras questões que o homem criou o que os gregos denominaram de “filosofia” (cujo significado é “amor à sabedoria”). Trata-se de um exercício mental que se caracteriza, sobretudo, pela persistente e incessante procura de compreensão da realidade. É incansável tentativa de apreensão do significado de cada coisa, individualmente, e da sua inserção num todo. É a necessidade psicológica de responder àquelas questões básicas, primitivas, fundamentais (onde estou? o que sou? de onde venho? para onde vou?) que o primeiro homem formulou (não se sabe quem, como, quando e onde, mas que se tem a certeza que alguém fez um dia), produzindo a primeira e, certamente, a mais importante revolução já feita no Planeta: a da inteligência.

Mas a propensão do homem pelo fantástico é irresistível. Por isso, para explicar o sol, a lua, as estrelas, o dia, a noite, as estações do ano, os ciclos da natureza etc., criou, em sua mente, seres poderosos e imortais, nos quais passou a acreditar piamente, sem se dar conta que eram frutos da sua imaginação. Tão logo intuiu o sentido de divindade, de um criador de tudo o que o cercava e dele próprio, esse animal fantástico e exótico “criou” o primeiro mito.

Todavia, sua tendência à racionalização foi além, muito além dessa criação. Precisava “explicar”, com lógica, “racionalmente”, como essas supostas entidades poderosas, sobre-humanas, criaram o mundo. Dessa forma, inventou a cosmogonia, com deuses que encarnavam a natureza, mesclados com aspectos da condição humana. Estavam lançados os fundamentos da religião (uma das primeiras grandes criações humanas), inicialmente como manifestação de inteligência. Ou seja, de uma tentativa de “explicar” a realidade através do mito. Mais tarde, como instituição, se diversificou, até que chegasse à infinidade de crenças que existe hoje.

Naqueles tempos remotos, e heróicos, a comunicação de idéias era façanha, mesmo dentro dos primitivos clãs. A primeira linguagem, certamente, era uma algaravia de grunhidos, chiados, rosnados e outros tantos sons, acompanhados de gestos. Mas possibilitava comunicar as necessidades básicas do cotidiano. Com o tempo, contudo, teve um desenvolvimento notável, de geração para geração.

Aquela forma rudimentar e selvagem de comunicação foi, gradativamente, se racionalizando. À medida que o tempo passava, foram sendo criados novos símbolos, mais simples, mais enfáticos, que aos poucos se popularizaram. Todavia, quer a transmissão de idéias, quer a preservação das crônicas do cotidiano, como caçadas, guerras, catástrofes e experiências, dependiam, exclusivamente, da memória. Passavam, pois, de uma geração a outra, bastante deturpadas em relação à comunicação original. Ainda assim, mesmo que parcialmente, foram preservadas.

Formou-se uma corrente comunicativa no tempo. Técnicas de memorização foram desenvolvidas e difundidas. Os mais velhos transmitiam todo o conhecimento que adquiriam aos mais jovens, que, por seu turno, o repassavam aos descendentes (não sem antes, claro, alterar alguma coisa), que faziam a mesma coisa com filhos e netos, e assim sucessivamente. Não havia registros escritos, pois não havia, ainda, o alfabeto.

Foi dessa forma, pois, que nasceram as narrativas de tempos fabulosos, em que deuses e homens conviviam, lado a lado e, não raro, se confrontavam. Feitos corriqueiros, mas que eram de grande importância para o clã, eram transformados em “heróicos”, passado muito tempo após ocorridos. E cada geração acrescentava um detalhe a mais, alguma coisa da própria invenção – quanto mais inverossímil, melhor – sobre o relato que havia ouvido, pois, como está mais do que provado, a imaginação popular tem uma irresistível tendência ao exagero. Esta é, grosso modo, a origem dos grandes mitos. Voltarei, certamente, ao assunto.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. São possibilidades que jamais saberemos com exatidão. Gostei da sua visão de como o homem criou a religião.

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