Ilustração: Thiago Cayres
Caminho de Santiago extra prime
* Por Marcelo Sguassábia
Tragam-me uvas frescas e tâmaras secas, imediatamente. A um estalar de dedos, quero caviares russos recém-embalados, trufas brancas de Piemonte e leite de cabra para hidratar os pés.
Alguns condenam-me pelo excessivo fastio nessa empreitada onde deveria prevalecer o sacrifício. Respeito, mas contesto. Afinal, o próprio Santiago foi um VIP. Quer existência mais VIP do que ser um dos eleitos de Jesus Cristo, predestinado entre milhões para entrar na história do mundo como um dos 12 apóstolos? O homem foi escolhido a dedo pra subir aos céus sem escala, com toda a pompa que os mártires merecem.
Sem querer insultar o santo, como quase todo VIP o nosso herói de Compostela soube se promover e atrair para si os holofotes da época. Reza a lenda que o glorioso Santiago quis que seus ossos fossem descobertos, após séculos esquecidos numa arca de mármore. Para tanto, patrocinou noites e noites seguidas de chuvas de estrelas, no Bosque de Libredón, onde foi enterrado. Alguém contesta que isso é gostar de aparecer? Entendo que, se ele permite que eu complete meu caminho com todas essas regalias a que me entrego, é porque o procedimento não destoa do seu código de conduta enquanto santo de primeiro time. Caso contrário, faria recair a ira divina sobre minha carcaça.
O que importa é concluir a jornada, seja lá como for. Se o faço com banquetes a cada quinhentos metros, é porque Deus me julga abençoado e concede-me a graça de que assim seja. Os que se penitenciam passando sede, fome, cãibras e dores no corpo de caso pensado, assim o fazem provavelmente por terem a consciência pesada e por saberem que devem se sacrificar para alcançar a misericórdia divina. Não é o meu caso. Sou um homem justo e de consciência limpa. Pago religiosamente sete nonos de um salário mínimo a cada um desses serviçais que me transportam na liteira e me abanam com plumas de avestruz, em turnos de 16 horas com 30 minutos de merecido descanso para um naco de goiabada. Nem Salomão dispensaria melhor tratamento a seus escravos.
Quando me enfastia ficar deitado entre linhos e sedas, apeio do meu dossel ambulante e caminho uns três minutos, não sem antes cobrir-me com o véu antimoscas, calçar meu tênis com quatro exclusivos sistemas de amortecimento simultâneo e levar comigo um razoável estoque de Perrier a -3ºC. Compreendam que uma empreitada de 800 quilômetros para purificação do espírito não pode levar à destruição do corpo. E sendo ele a morada da alma, deve ser tratado a pão-de-ló. Agora, se me dão licença, é hora de aparar minhas cutículas.
• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
Só posso rir satisfeita pelo deleite que é ler suas bem traçadas linhas. Essa é a imagem de homem justo e misericordioso. Sete nonos de um salário mínimo? Que conta complexa. Pobres escravos!
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