Enchente de 1911 – Um século depois
* Por Urdas Alice Klueger
* Por Urdas Alice Klueger
(Histórias da minha avó VI)
Naqueles anos em que eu tinha oito, nove, dez anos, minha avó Emma Katzwinkel Klueger morou na nossa casa, à rua Antônio Zendron 668 – Garcia – Blumenau. Aquela foi a única avó que eu conheci e outras vezes já escrevi sobre ela, uma grande contadora de histórias, um grande achado para uma criança curiosa e ávida de novidades como eu era. Passava horas infindas ouvindo o que ela tinha para contar, e assim acabei aprendendo uma porção de coisas. É claro que naquela época e lugar usar a palavra “avó” ficaria uma coisa muito estranha – avós de origem alemã eram chamadas de Oma (os avôs era Opa) (apesar de a minha avó ser imigrante lituana) – já as avós e avôs de ascendência italiana eram nona e nono.
Pois bem, foi com a minha Oma Klueger que eu muito convivi naquele período em que estava aprendendo a minha própria vida, e agora que é o ano de 2011 e, portanto, já se passou um século desde a grande enchente de 1911, fico a me lembrar das coisas que ela contava a respeito.
Em 1911 minha Oma já era casada e tinha uma criança, tia Wanda. Tio Erich, seu segundo filho, nasceu durante a enchente, coisa tão marcante que acho que todo o mundo sabia – eu, pelo menos, nunca esqueci tal fato – se vivo, tio Erich Klueger estaria fazendo 100 anos neste mês de outubro. Com tanta chuva e umidade minha Oma tinha dificuldade de manter secas as fraldas do seu bebezinho e as punha a secar sobre o fogão de lenha. Não podemos esquecer que na casa já havia uma menininha que estava muito enciumada com a chegada daquela concorrência, e que já era esperta o suficiente para tentar fazer valer seus sentimentos: em pleno frio da enchente, pegou o irmãozinho recém nascido, desembrulhou-o e deixou-o abandonado sem as fraldas secadas com tanto trabalho! Coisas inolvidáveis que uma avó pode contar para uma criança!
Mas minha Oma tinha muitas outras coisas para contar sobre aquela enchente. Foi através dela que eu soube que o rio da cidade represara até a baixada da Rua Antônio Zendron, onde eu morava, chegando aos pés do Salão Hinkeldey, que pertencera a um tio do meu pai, casado com uma das moças Klueger irmã do meu avô. É claro que desde 1911 as coisas tinham mudado – quando eu era criança, o antigo Salão Hinkeldey se chamava Cine Garcia, onde vi muitos filmes de Tarzan e Elvis Presley – hoje, naquele lugar há a Igreja de Santo Antônio.
Havia mais curiosidades a aprender sobre aquela enchente, no entanto. Se o rio da cidade viera até ali na baixada da minha rua, tal significava que ele cobrira as terras de muitos moradores que eu conhecia, como as do seu Leo Deschamps. Bem no pasto do seu Leo Deschamps minha avó me mostrava uma pequena depressão no meio da grama onde, quando as águas refluíram, ficaram presas ali muitas traíras, peixe muito conhecido e apreciado lá nos tempos em que eu era criança.
- As pessoas mataram as traíras a facão – contava minha avó, e dava detalhes, sobre como as traíras estavam furiosas, tentando desesperadamente salvar suas vidas aprisionadas naquele pouco de água que o sol estava evaporando, e de como elas esbravejavam e tentavam escapar dos facões e, criança sensível que eu era, morria de pena das pobres traíras e como que via sua luta que fazia a pouca água espumejar e a morte sem piedade de todas elas.
Eu nunca esqueci daquele exato lugar no pasto do seu Leo Deschamps onde houvera aquela matança de traíras em 1911, nem nunca consegui passar lá sem me lembrar. Recentemente, passei por lá de novo, e a baixada da rua Antônio Zendron já não tem mais nenhum pasto, e fica complicado se lembrar como era lá nos anos da minha infância. Foi-me fácil, no entanto, identificar o lugar onde aquelas traíras lá do passado morreram sob tanta selvageria: naquele lugar, exatamente naquele lugar, hoje, há uma pequena praça de esportes, toda de concreto, próxima da Associação Kolping. Talvez ninguém mais vivo, hoje, se lembre daquilo. Achei que era minha obrigação escrever a respeito.
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
Naqueles anos em que eu tinha oito, nove, dez anos, minha avó Emma Katzwinkel Klueger morou na nossa casa, à rua Antônio Zendron 668 – Garcia – Blumenau. Aquela foi a única avó que eu conheci e outras vezes já escrevi sobre ela, uma grande contadora de histórias, um grande achado para uma criança curiosa e ávida de novidades como eu era. Passava horas infindas ouvindo o que ela tinha para contar, e assim acabei aprendendo uma porção de coisas. É claro que naquela época e lugar usar a palavra “avó” ficaria uma coisa muito estranha – avós de origem alemã eram chamadas de Oma (os avôs era Opa) (apesar de a minha avó ser imigrante lituana) – já as avós e avôs de ascendência italiana eram nona e nono.
Pois bem, foi com a minha Oma Klueger que eu muito convivi naquele período em que estava aprendendo a minha própria vida, e agora que é o ano de 2011 e, portanto, já se passou um século desde a grande enchente de 1911, fico a me lembrar das coisas que ela contava a respeito.
Em 1911 minha Oma já era casada e tinha uma criança, tia Wanda. Tio Erich, seu segundo filho, nasceu durante a enchente, coisa tão marcante que acho que todo o mundo sabia – eu, pelo menos, nunca esqueci tal fato – se vivo, tio Erich Klueger estaria fazendo 100 anos neste mês de outubro. Com tanta chuva e umidade minha Oma tinha dificuldade de manter secas as fraldas do seu bebezinho e as punha a secar sobre o fogão de lenha. Não podemos esquecer que na casa já havia uma menininha que estava muito enciumada com a chegada daquela concorrência, e que já era esperta o suficiente para tentar fazer valer seus sentimentos: em pleno frio da enchente, pegou o irmãozinho recém nascido, desembrulhou-o e deixou-o abandonado sem as fraldas secadas com tanto trabalho! Coisas inolvidáveis que uma avó pode contar para uma criança!
Mas minha Oma tinha muitas outras coisas para contar sobre aquela enchente. Foi através dela que eu soube que o rio da cidade represara até a baixada da Rua Antônio Zendron, onde eu morava, chegando aos pés do Salão Hinkeldey, que pertencera a um tio do meu pai, casado com uma das moças Klueger irmã do meu avô. É claro que desde 1911 as coisas tinham mudado – quando eu era criança, o antigo Salão Hinkeldey se chamava Cine Garcia, onde vi muitos filmes de Tarzan e Elvis Presley – hoje, naquele lugar há a Igreja de Santo Antônio.
Havia mais curiosidades a aprender sobre aquela enchente, no entanto. Se o rio da cidade viera até ali na baixada da minha rua, tal significava que ele cobrira as terras de muitos moradores que eu conhecia, como as do seu Leo Deschamps. Bem no pasto do seu Leo Deschamps minha avó me mostrava uma pequena depressão no meio da grama onde, quando as águas refluíram, ficaram presas ali muitas traíras, peixe muito conhecido e apreciado lá nos tempos em que eu era criança.
- As pessoas mataram as traíras a facão – contava minha avó, e dava detalhes, sobre como as traíras estavam furiosas, tentando desesperadamente salvar suas vidas aprisionadas naquele pouco de água que o sol estava evaporando, e de como elas esbravejavam e tentavam escapar dos facões e, criança sensível que eu era, morria de pena das pobres traíras e como que via sua luta que fazia a pouca água espumejar e a morte sem piedade de todas elas.
Eu nunca esqueci daquele exato lugar no pasto do seu Leo Deschamps onde houvera aquela matança de traíras em 1911, nem nunca consegui passar lá sem me lembrar. Recentemente, passei por lá de novo, e a baixada da rua Antônio Zendron já não tem mais nenhum pasto, e fica complicado se lembrar como era lá nos anos da minha infância. Foi-me fácil, no entanto, identificar o lugar onde aquelas traíras lá do passado morreram sob tanta selvageria: naquele lugar, exatamente naquele lugar, hoje, há uma pequena praça de esportes, toda de concreto, próxima da Associação Kolping. Talvez ninguém mais vivo, hoje, se lembre daquilo. Achei que era minha obrigação escrever a respeito.
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
Memória invejável, Urda, que me fez lembrar a minha mãe, uma grande contadora, como a sua Oma.
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