sábado, 22 de outubro de 2011







Perón em fuga no Amapá

* Por Euclides Farias


O motor do Douglas C-47 roncava alto procurando força e a custo conseguiu aterrissagem na base aérea construída na Segunda Guerra Mundial na minúscula e perdida cidade de Amapá, no então Território Federal do Amapá. Era setembro de 1955. Da aeronave desceram o piloto, uma aeromoça e um mito. O avião, emprestado com tripulação pelo ditador paraguaio Alfredo Stroessner, fez o pouso forçado por falta de combustível. Perto dali, o cabo Alfredo Oliveira atendeu a um estafeta e teve que interromper a aula de produção de farinha na escola agrícola do lugarejo para atender a ilustre desconhecido.

- Bom dia, eu sou o general Juan Domingo Perón.
- Bom dia - retrucou o cabo, sem atinar para o nome ou relevo do interlocutor. - O que vosmecê deseja?

Começou assim a saga do deposto presidente argentino em plena floresta amazônica, em sua rota de fuga à Nicarágua, segundo o relato feito pelo próprio Alfredo Oliveira, hoje advogado aposentado que, aos 85 anos, vive em Belém, à repórter Aline Monteiro, do jornal O Liberal. Diante das fotografias em que aparece ao lado de Perón já amarelecidas pelo tempo, ele concordou em remexer a memória depois de assistir a baderna que marcou o segundo funeral de Perón, na cidade de San Vicente, na Grande Buenos Aires.

Diz que, com exílio negado pelo Brasil, o máximo que Perón conseguiu, desde que decolou da pista paraguaia e entrou no espaço aéreo brasileiro, foram paradas técnicas para abastecer o avião, ganhar suprimentos e seguir em frente. Uma imprecisão no relato de Alfredo sugere que Perón, em fuga, ocultou o verdadeiro destino. Saindo de Assunção, em linha reta, Manágua fica fora de rota para quem vai à Espanha, onde de fato o general se exilou. O Amapá, sim, fica a caminho de Madri. Por isso menos provável, outra hipótese é que, antes de atravessar o Atlântico, ele tenha pensado em pedir guarida política à Nicarágua.

O fato é que sem auxílio imediato para prosseguir a viagem o general pernoitou na casa de Alfredo. Isso depois de o precavido anfitrião, que lutara na Segunda Guerra e soubera pelo próprio Perón das restrições das autoridades brasileiras, comunicar e obter do governador amapaense Amílcar Pereira a autorização para oferecer abrigo. Foi então que um pedaço da história da Argentina sentou praça e se descortinou naquele lugar ermo.

Alfredo desenha Perón como um homem educado, mas nervoso pelos acontecimentos em seu país e pelo contratempo aeronáutico. Fumante emérito, o general descontava no cigarro. “Na hora de comer, era uma colherada e uma tragada”, recorda. Nas fotografias, o tabagismo de Perón é flagrado em profusão. “Sempre havia”, conta Alfredo, “um cigarro entre os dedos, aceso ou não”. Ficou, também, a impressão de um Perón amargo com o golpe militar que sofrera, depois de ter chegado ao poder por meio de um.

Ex-pracinha e com amizades na base aérea, Alfredo pôs o C-47 de novo no ar com gasolina arranjada de um piloto. Um mês depois, o gesto teria a gratidão de Perón, em carta escrita de próprio punho. Na correspondência, de 11 de novembro de 1955, o general derramava-se: “A hospitalidade que recebemos nesta terra nos força a uma eterna gratidão! Somos todos irmãos! Se pratica no Brasil, em toda a sua plenitude, a nobreza dos homens bons”.

Na lembrança do velho cabo não há sequer resquício do mito, hoje ainda capaz, 51 anos depois do pouso forçado no Amapá e 32 de sua morte, de gerar sangrento pugilismo entre seus fanáticos seguidores das facções militar e operária. “Era um homem comum”, engana-se o bom Alfredo.

• Jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.

Nenhum comentário:

Postar um comentário