quarta-feira, 19 de outubro de 2011







Amor em pedaços

* Por Mara Narciso


Relembro com saudade o grande amor, pensando sobre o que é dar certo. Ele era um rapaz de 20 anos, que bebia e fumava. Tinha tido muitas namoradas e passava os fins-de-semana em shows, namorando, cantando e dançando. Eu era uma virgem ingênua, de 18 anos, que nunca tinha cortado os cabelos (chegavam abaixo da parte de trás dos meus joelhos). Eu me resguardava pura para o casamento. O corpo é a morada do Senhor e eu me vestia conforme a doutrina da minha crença. Usava vestidos cobrindo os joelhos, com mangas, e sem decote. Era orientada a não ter vaidade, nem usar esmalte, nem maquiagem, e nem pinçar as sobrancelhas. A minha família seguia esses preceitos, que sempre foram e sempre serão verdades para mim.
Com vidas diferentes, conheci o meu amor por acaso. Gostamos um do outro, mas era preciso que meu pai permitisse o namoro e para tal ele teve de se converter à minha religião evangélica. Assim fez. Mostrou-se satisfeito em ingressar na minha igreja. Namoramos, noivamos e nos casamos. Éramos apaixonados, e nossa vida de casados era boa. Morávamos bem. Íamos juntos ao culto. Meu marido abandonou os vícios. Trabalhava bastante e fomos prosperando. Chegaram três filhos, e mantive a tradição familiar dando-lhes exemplos e ensinamentos.
Sempre em casa, cuidando de tudo, parei os estudos e não fui trabalhar. A dedicação a família foi integral, zelando pela moradia, a comida, as roupas e as crianças. Era caprichosa comigo, porém com o tempo notei que meus atrativos não mais supriam as necessidades do meu marido, que passou a mostrar-se insatisfeito, depois arredio e por fim distante.
Rompeu com a igreja e os vícios voltaram. Não mais saía comigo. Passou a criticar os meus modos, vestimentas e crenças. Dizia que as minhas roupas eram feias, e que precisava de uma mulher que o acompanhasse aos bares, boates e festas. Gostava de dançar e foi afastando-se mais. Então, parou de me procurar, abandonando-nos em seguida. Nossos filhos estavam quase criados e nós dois com 38 e 40 anos, respectivamente.
Meu agora ex-marido, para minha vergonha, pediu o divórcio, e arrumou uma mulher que é como ele desejava. Sozinha, entrei em pânico e para tentar reconquistá-lo pensei bobagens, tentando transformar-me em algo que nunca fui e nem quero ser. A minha maior insanidade foi cortar os cabelos na altura dos ombros e fazer luzes. Precisava me mostrar, aparecer para ele, tentar atraí-lo. Desesperada, entendi que ele nunca mais voltaria, e que os meus cabelos, admirados no começo, por serem pretos, lisos e cheirosos, e que me cobriam quase todo o corpo já não eram nada. Apenas um arremedo do que tinham sido. O desespero atingiu seu grau máximo. Parecia que eu me tornara louca. Estava com a mente partida, em crise existencial, com dupla identidade ou pior, querendo algo que nem eu saberia explicar.
O chão sumiu, e, suspensa no ar, me debatia, sentindo o sangue ferver pelo corpo numa agonia sem fim. Mal dormia e muito comia. Com o excesso de alimento eu buscava me reequilibrar, cair em mim, sobreviver. Passei a engordar, rapidamente no ritmo de um quilo ou mais por mês. A única coisa que me acalmava era sentir o estômago cheio, explodindo. O alimento era refúgio, consolo, companhia e sexo.
Os filhos se assustaram em me ver comendo e repetindo, enchendo a minha existência com comida. As roupas não mais me serviam. Fui comprando umas poucas, pois a vaidade, que nunca fez parte de mim, sumiu. Tanto faz, como tanto fez. E daí? E para quê? A religião, no entanto, manteve-me viva. Nela achei esperança e paz. Quanto a minha crença, nada mudou. Mantive-me firme em minhas certezas.
Em relação ao corpo, ele precisa ser cuidado e respeitado. Por isso decidi emagrecer os 20 quilos que ganhei. Meu coração precisa melhorar. Amo e sofro, porém me mantenho digna. A loucura de cortar os cabelos doeu forte, mas eles crescerão. Agora eu sou um amor em pedaços, e isso não é nada doce.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

5 comentários:

  1. Retrato sem maquiagem de muitas pessoas e lares. Talvez seja, inclusive, um instantâneo do seu consultório - deduzi isso pelo caso do ganho de peso. Mais um texto reflexivo e denunciador de nossas mazelas, imperfeições e buscas - quase sempre malogradas. Parabéns, Mara.

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  2. Marcelo, obrigada pela visita e comentários. Dedução correta, pois não se trata de mim. São pedaços de vida, tão tristes e verdadeiros, que vão deixando pelo nosso caminho.

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  3. Presenciei durante anos a fio uma grande mulher
    se acabando por conta de sobras de amor.
    Esse espelho eu quebrei e enterrei.
    Ótimo texto Mara.
    Abraços

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  4. Mara,
    fico triste quando vejo alguém sofrer por amor. Ficar em pedaços. Depois que o tempo passa, percebemos que o sofrimento foi inútil. Mas, ás vezes, é necessário para o crescimento ou quem sabe, fortalecimento.
    Alguns ou algumas aprendem, já outros...passam a vida a dar cabeçada. Parece que a " profissão" predileta é amar sem ser amado. Seri masoquismo ??
    Como disse a Nubia : " sobras de amor". Terrível alguém viver de sobra.
    Acontece nas melhores famílias. E ainda acredito que o grande vilão é a falta do amor. Ou falta de capacidade de se amar e de AMAR.

    Bj

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  5. Núbia, é triste vermos pessoas aparentemente equilibradas aceitarem migalhas como banquetes e restos como presentes. Precisamos aceitar o fim como o fim, e não ficar rastejando em busca do que já acabou. Difícil fazer, mas precisa ser assim. Que consigamos sobreviver com dignidade.Você, sim, disse tudo com "sobras de amor". Não é bom para ninguém.
    Celamar, é preciso sofrer para crescer. Então passamos a ter capacidade de nos amar.O vilão é a falta de capacidade de se amar, e na minha opinião, o fanatismo religioso também é um anexo a ser considerado.
    Obrigada meninas pelo comentário.

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