Confraria
* Por Marco Albertim
* Por Marco Albertim
O vento frio açoita. Vem da praia, não distante dali. Marilu fora a primeira a chegar. Deixara a espuma do colchonete sob um oitizeiro de tronco grosso; na raiz, sobre a grama fria em volta. Enrosca-se sob o fino lençol branco, encardido. O vento colide nos oitizeiros, faz a curva e segue para o oitão coberto da igreja. As portas estão fechadas, o chão de tijolos cozidos ainda tem uma áspera camada de areia, grãos deixados pelo solado dos sapatos de mulheres e homens misseiros. A igreja, com o oitão de frente para a avenida, dá-se para todos os olhos; das gentes habituadas a seu barroco remendado, das viaturas da polícia à cata de ladrões, de suspeitos.
Com pouco, vem o segundo morador que se ajeita sem rezas, mesmo sabendo que por trás das quatro portas de madeira, há um altar de pouca altura, com um Cristo de rosto tão remelado quanto o dele. É um negro papudo que tem na cintura uma calça feminina; num dos lados, o zíper que a sustenta. Sua gordura mantém-se balofa, graças a restos de comida à base de mandioca obtidos durante o dia. Põe seu colchonete ao lado do de Marilu. Marilu tem os olhos abertos no rosto magro, como de uma coruja de olhos fundos. Acostumara a nutrir-se da brisa, para não se render à indiferença de moradores do casario atrás da igreja, ou do outro lado da avenida, na beira-mar, em casas com forro no teto e edredons nos colchões.
- Por que não volta pra casa, Valmir? – Marilu já está sentada.
- Tenho medo de apanhar de novo...
- Ninguém tem o direito de bater em ninguém sem motivo...
- Mas ele me bate. Ele diz que tem vergonha de mim porque eu sou sujo.
Valmir não tem a voz fina, modula-a conforme o sentimento de cada palavra; deixa-se flagrar na feminilidade aceita sem sustos, desde a infância. A cada açoite do vento, Marilu espreme as pupilas nas pálpebras; não se protege, dialoga com a flutuação dançante dos botes, no bacorejo da maré de lua. Valmir pressente-a com frio, tira da sacola de plástico um litro de cachaça. Tem cada um, uma xícara de plástico. Bebem sem se lembrar que o cheiro de sal trazido pelo vento, mistura-se ao frescor de uma tainha nova, com escamas reluzentes. O esgar a cada sorvo não é nada, comparado à sujeira entranhada em seus corpos, nos trapos que insistem em chamar de lençóis.
- Ainda tem pinga? – ouvem.
O mesmo vento trouxera Mariano da nua exposição aos açoites na beira-mar. Não miram ponteiros de relógio, mas combinam-se num zumbido de farejo de quando a lua se põe cheia, ou quando o vento sopra ameaçador e familiar, há que ter começo a espreita da morte breve, prelibada nos goles secos de cachaça.
Mariano tira do bolso o copo. O ruído do líquido despejado é festivo, odorante. O olfato, ao dar conta do néctar, mostra-se vivo, em nada parecido com as fuças mortas de um defunto vivo. Ele é magro, tem o torso curvado, usa bermuda e camisa escuras como sua pele; 29 anos, logo entregar-se-á ao sono que o deixará o dia inteiro entregue ao torpor dos olhos vítreos.
Não está só, tem ao lado de si o mais velho de todos. Regis tem um bigode estranhamente aparado, tão bem aparado nos lados que parece um traço em alto-relevo no rosto vincado pelo cigarro, pela bebida. Ri para dar conta dos dentes ainda inteiros, inda que sujos. Faz questão de não usar a camisa, pendurando-a no ombro. A pele cola nas costelas como uma calça justa num corpo aprumado.
Marilu esquecera-se de seu compromisso de não se render nem à indiferença da Casa Paroquial; pregara os olhos, e antes da profundidade do sono, tiritara os dentes com brechas entre um e outro.
Casada com Mariano, Lúcia é a última a chegar. O marido já tem o torpor nos olhos, mal aprecia o bafo da mulher, tão familiar a seu olfato vivo. Ela, também com um colchonete, deita-se ao lado de Regis, rindo para os olhos dele, entretendo-se na elegância de seu bigode. Põe a cabeça no peito peludo, nutre-se no enjoo ao marido...
Com pouco, vem o segundo morador que se ajeita sem rezas, mesmo sabendo que por trás das quatro portas de madeira, há um altar de pouca altura, com um Cristo de rosto tão remelado quanto o dele. É um negro papudo que tem na cintura uma calça feminina; num dos lados, o zíper que a sustenta. Sua gordura mantém-se balofa, graças a restos de comida à base de mandioca obtidos durante o dia. Põe seu colchonete ao lado do de Marilu. Marilu tem os olhos abertos no rosto magro, como de uma coruja de olhos fundos. Acostumara a nutrir-se da brisa, para não se render à indiferença de moradores do casario atrás da igreja, ou do outro lado da avenida, na beira-mar, em casas com forro no teto e edredons nos colchões.
- Por que não volta pra casa, Valmir? – Marilu já está sentada.
- Tenho medo de apanhar de novo...
- Ninguém tem o direito de bater em ninguém sem motivo...
- Mas ele me bate. Ele diz que tem vergonha de mim porque eu sou sujo.
Valmir não tem a voz fina, modula-a conforme o sentimento de cada palavra; deixa-se flagrar na feminilidade aceita sem sustos, desde a infância. A cada açoite do vento, Marilu espreme as pupilas nas pálpebras; não se protege, dialoga com a flutuação dançante dos botes, no bacorejo da maré de lua. Valmir pressente-a com frio, tira da sacola de plástico um litro de cachaça. Tem cada um, uma xícara de plástico. Bebem sem se lembrar que o cheiro de sal trazido pelo vento, mistura-se ao frescor de uma tainha nova, com escamas reluzentes. O esgar a cada sorvo não é nada, comparado à sujeira entranhada em seus corpos, nos trapos que insistem em chamar de lençóis.
- Ainda tem pinga? – ouvem.
O mesmo vento trouxera Mariano da nua exposição aos açoites na beira-mar. Não miram ponteiros de relógio, mas combinam-se num zumbido de farejo de quando a lua se põe cheia, ou quando o vento sopra ameaçador e familiar, há que ter começo a espreita da morte breve, prelibada nos goles secos de cachaça.
Mariano tira do bolso o copo. O ruído do líquido despejado é festivo, odorante. O olfato, ao dar conta do néctar, mostra-se vivo, em nada parecido com as fuças mortas de um defunto vivo. Ele é magro, tem o torso curvado, usa bermuda e camisa escuras como sua pele; 29 anos, logo entregar-se-á ao sono que o deixará o dia inteiro entregue ao torpor dos olhos vítreos.
Não está só, tem ao lado de si o mais velho de todos. Regis tem um bigode estranhamente aparado, tão bem aparado nos lados que parece um traço em alto-relevo no rosto vincado pelo cigarro, pela bebida. Ri para dar conta dos dentes ainda inteiros, inda que sujos. Faz questão de não usar a camisa, pendurando-a no ombro. A pele cola nas costelas como uma calça justa num corpo aprumado.
Marilu esquecera-se de seu compromisso de não se render nem à indiferença da Casa Paroquial; pregara os olhos, e antes da profundidade do sono, tiritara os dentes com brechas entre um e outro.
Casada com Mariano, Lúcia é a última a chegar. O marido já tem o torpor nos olhos, mal aprecia o bafo da mulher, tão familiar a seu olfato vivo. Ela, também com um colchonete, deita-se ao lado de Regis, rindo para os olhos dele, entretendo-se na elegância de seu bigode. Põe a cabeça no peito peludo, nutre-se no enjoo ao marido...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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