Insônia
* Por Marco Antonio Araújo
Madrugadas longas, as minhas. Infindas. Tanto que, para mim, adormecer é um privilégio. Considero dádiva o que para muitos é fato normal, cotidiano e sem mérito nenhum. Claro que perco a consciência durante algumas horas diárias: chega um mo¬mento que meus olhos se fecham, doloridos, e meu corpo, massacrado, relaxa como uma mosca esmagada. Mas não posso dizer que adormeço. Apenas sou destruído temporariamente por uma força implacável. Nenhum privilégio, portanto.
As pessoas costumam dizer que pegaram no sono. Deve haver alguma lógica nisso. Eu nunca peguei. Imagino que seja delicado, ma¬cio. Algo para se acariciar descuidadamente, porque sabe-se que está lá, ao lado, às vezes sem que se perceba. Como uma esposa de quem se gosta mesmo após muitos anos. Uma mulher: impossível imaginá-lo de outra forma. Só pode ser feminino seu caráter diáfano, etéreo, aconchegante. Talvez por isso, apenas as mães possuam o beijo terno que os filhos recebem quando dormem aquele sono que, por sua vez, só pertence à infância - essa outra menina.
Antes que alguma dúvida comprometa o sentimento de piedade que procuro despertar, esclareço que a pretensão poética e o apego às minúcias quando me refiro ao sono não vêm de conhecimento de causa, mas de um mesquinho interesse que me leva a vasculhar o que desconheço e in¬vejo. Ao in¬discretamente observar a sonolência alheia, faço-o, reconheço, como um desprezível voyeur.
Exercitei essa indiscrição em algumas das cruéis noites de insônia nas quais pude contar com a generosa companhia de mulheres (na verdade, anjos que dissimulavam a solidão inerente aos notívagos). Mas, por mais dedicadas que fossem essas criaturas levemente devassas, nenhuma esperou comigo a chegada das primeiras luzes dos dias. Adormeciam, serenos, os querubins.
Nesses momentos, inspirado pela gratidão que sentimos pelos que se deitam conosco, pude entender os vários contornos, desenhos e imagens que se delineiam no rosto de quem dorme. É frágil a pessoa adormecida. Como se nela houvesse uma ausência implícita ou um inter¬valo, talvez. Nunca descobri, nem quis, quem seria o indivíduo esquecido ou a atitude abandonada durante essas horas tão vulneráveis. Diante disso, julguei ter compreendido o valor do silêncio.
Essa paz absolutamente humana, que me vem sendo negada como um castigo, tornou-se para mim algo sagrado, um ritual que tive de preservar em outros corpos, felizmente amados. Zelei pelo sono de minhas meninas como um cão, como uma sentinela do paraíso, como um anjo guardando outros. Foi nessas horas que eu mais as amei. Elas não sa¬bem, mas também foi quando eu me senti mais amado.
Nenhuma entrega, mesmo aquelas que nos surpreendem pelo despudor, me pareceu tão irrestrita quanto se deixar ver dormindo, a alma translúcida, o sexo aplacado, os lábios emoldurando uma felicidade tranqüila, escandalosamente possível. Sonhavam. Ficavam ali, sem intermediários. Eu presenciei esse milagre vulgar: como eram lindas e puras aquelas moças, assim.
Às vezes, essa contemplação era interrompida por visitas inesperadas, vindas desse mundo a princípio acolhedor, mas que também contém seres terríveis, rancorosos, vingativos. Alojavam-se com arrogância naqueles rostos calmos, desfigurando-os, atormentando-os, arrancando gemidos e súplicas incompreensíveis. Pesadelos.
Demônios se escondiam nas penumbras do quarto e recusavam-se a se retirar pacificamente. Sussurros ou pedidos de clemência não sensibilizavam os invasores. Via minhas meninas sofrendo e não podia fazer nada para preservar-lhes o sono admirado. Tinha que lançar mão de heresias e implorar-lhes que acordassem. Elas despertavam, aterroriza¬das, e ficavam longos segundos olhando para mim como se eu fosse o inimigo, até entenderem que foram resgatadas do santuário profanado.
Os seres que habitam as profundezas do sono são realmente apavorantes. Velhos disformes, crianças mortas, animais ferozes, multidões insanas. Os cenários, sempre sombrios, sufocantes ou abismais. Precipícios.
Quedas intermináveis. Os pesadelos têm um método eficiente de serem ainda mais perversos: nos momentos anteriores ao seu fim, quando a angústia e o terror se tornam insuportáveis, nesses instantes críticos, os monstros que administram a tortura abrem pequenas portas de lucidez e deixam o padecente perceber que o sofrimento é irreal, que é preciso acordar, sair do redemoinho, abrir os olhos, gritar por socorro, clamar por alguém no quarto ao lado, chacoalhar o corpo até despertar, fazer qualquer coisa para interromper o pânico. Esse é o grande trunfo, o último. Estender ao máximo o estertor, criar a impressão que mesmo sabendo que tudo é mentira, não será fácil sair desse mundo inóspito, dessa vertigem. Nesses últimos segundos, o clímax da impotência, o medo imemorial, o suor, a aceleração cardíaca. O grito.
Jamais permiti que minhas meninas chegassem a ponto de gritar. Ao primeiro gemido, acariciava-lhes os cabelos, beijava-lhes a face, murmurava palavras suaves e encorajadoras, jurando um amor maior do que eu tinha, por mais que fosse. Quando essas orações não adiantavam, esgotado o último carinho possível, se não se acalmavam, se não iam embora as visitas medonhas, se o retorno ao sono tranqüilo era impossível, então apertava suas mãos úmidas e aumentava o tom de voz, mantendo apenas a suavidade das palavras. Retornavam, subitamente. Então, abraçava seus corpos trêmulos.
Sabia que logo começariam a descrever a experiência horrível que acabaram de suportar. Ouvia tudo com atenção, fazia observações solidárias, elaborava interpretações complexas e, ao menor descuido, emendava uma conversa tola. Aos poucos, o sono delas ia voltando e eu logo poderia ver de novo o semblante imaculado.
Não é à toa que os amantes dizem que dormiram juntos. "Dormi com ela", propaga às escondidas o indiscreto enamorado. Conquistar alguém é arrastá-lo para a companhia mais íntima, para a troca mais in¬tensa. A sedução se consuma além do ato físico, quando o que se com¬partilha de mais profundo é, não o corpo em movimento, mas a entrega inanimada. Seduzir alguém é poder acordar ao seu lado.
Dos meus anjos venerados, hoje sei: lhes emprestei minhas noites e madrugadas. Não dormimos juntos, lamento. Mas, de bom grado, lhes daria novamente todas as horas em que fiquei acordado. Graças ao sono deles, fiz da minha insônia e da vigília uma dor justificada, uma perda consentida, uma espera apaixonada.
...
— Você ainda não dormiu?
— Não. Estava pensando.
— Em quê? Em mim?
— De certa forma. Dormiu bem?
— Bastante. De que forma?
— O que?
— Você pensava em mim.
— Fiquei olhando você dormir. Estava linda.
— Então dorme também para eu poder olhar você e achar lindo.
— Estou sem sono.
— Deita aqui. Eu faço carinho até você dormir.
— Não precisa. Você deve estar cansada.
— Quer que eu conte uma história?
— Qual?
— A de Morfeu, deus do sono, dos sonhos e dos pesadelos.
— Começa.
— Encosta a cabeça aqui. Fecha os olhos. Relaxa.
— Isso é bom.
--- Eu sei. Agora fica quietinho e pense num tempo distante, quando o mundo só era habitado por seres imortais...
* Jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.
* Por Marco Antonio Araújo
Madrugadas longas, as minhas. Infindas. Tanto que, para mim, adormecer é um privilégio. Considero dádiva o que para muitos é fato normal, cotidiano e sem mérito nenhum. Claro que perco a consciência durante algumas horas diárias: chega um mo¬mento que meus olhos se fecham, doloridos, e meu corpo, massacrado, relaxa como uma mosca esmagada. Mas não posso dizer que adormeço. Apenas sou destruído temporariamente por uma força implacável. Nenhum privilégio, portanto.
As pessoas costumam dizer que pegaram no sono. Deve haver alguma lógica nisso. Eu nunca peguei. Imagino que seja delicado, ma¬cio. Algo para se acariciar descuidadamente, porque sabe-se que está lá, ao lado, às vezes sem que se perceba. Como uma esposa de quem se gosta mesmo após muitos anos. Uma mulher: impossível imaginá-lo de outra forma. Só pode ser feminino seu caráter diáfano, etéreo, aconchegante. Talvez por isso, apenas as mães possuam o beijo terno que os filhos recebem quando dormem aquele sono que, por sua vez, só pertence à infância - essa outra menina.
Antes que alguma dúvida comprometa o sentimento de piedade que procuro despertar, esclareço que a pretensão poética e o apego às minúcias quando me refiro ao sono não vêm de conhecimento de causa, mas de um mesquinho interesse que me leva a vasculhar o que desconheço e in¬vejo. Ao in¬discretamente observar a sonolência alheia, faço-o, reconheço, como um desprezível voyeur.
Exercitei essa indiscrição em algumas das cruéis noites de insônia nas quais pude contar com a generosa companhia de mulheres (na verdade, anjos que dissimulavam a solidão inerente aos notívagos). Mas, por mais dedicadas que fossem essas criaturas levemente devassas, nenhuma esperou comigo a chegada das primeiras luzes dos dias. Adormeciam, serenos, os querubins.
Nesses momentos, inspirado pela gratidão que sentimos pelos que se deitam conosco, pude entender os vários contornos, desenhos e imagens que se delineiam no rosto de quem dorme. É frágil a pessoa adormecida. Como se nela houvesse uma ausência implícita ou um inter¬valo, talvez. Nunca descobri, nem quis, quem seria o indivíduo esquecido ou a atitude abandonada durante essas horas tão vulneráveis. Diante disso, julguei ter compreendido o valor do silêncio.
Essa paz absolutamente humana, que me vem sendo negada como um castigo, tornou-se para mim algo sagrado, um ritual que tive de preservar em outros corpos, felizmente amados. Zelei pelo sono de minhas meninas como um cão, como uma sentinela do paraíso, como um anjo guardando outros. Foi nessas horas que eu mais as amei. Elas não sa¬bem, mas também foi quando eu me senti mais amado.
Nenhuma entrega, mesmo aquelas que nos surpreendem pelo despudor, me pareceu tão irrestrita quanto se deixar ver dormindo, a alma translúcida, o sexo aplacado, os lábios emoldurando uma felicidade tranqüila, escandalosamente possível. Sonhavam. Ficavam ali, sem intermediários. Eu presenciei esse milagre vulgar: como eram lindas e puras aquelas moças, assim.
Às vezes, essa contemplação era interrompida por visitas inesperadas, vindas desse mundo a princípio acolhedor, mas que também contém seres terríveis, rancorosos, vingativos. Alojavam-se com arrogância naqueles rostos calmos, desfigurando-os, atormentando-os, arrancando gemidos e súplicas incompreensíveis. Pesadelos.
Demônios se escondiam nas penumbras do quarto e recusavam-se a se retirar pacificamente. Sussurros ou pedidos de clemência não sensibilizavam os invasores. Via minhas meninas sofrendo e não podia fazer nada para preservar-lhes o sono admirado. Tinha que lançar mão de heresias e implorar-lhes que acordassem. Elas despertavam, aterroriza¬das, e ficavam longos segundos olhando para mim como se eu fosse o inimigo, até entenderem que foram resgatadas do santuário profanado.
Os seres que habitam as profundezas do sono são realmente apavorantes. Velhos disformes, crianças mortas, animais ferozes, multidões insanas. Os cenários, sempre sombrios, sufocantes ou abismais. Precipícios.
Quedas intermináveis. Os pesadelos têm um método eficiente de serem ainda mais perversos: nos momentos anteriores ao seu fim, quando a angústia e o terror se tornam insuportáveis, nesses instantes críticos, os monstros que administram a tortura abrem pequenas portas de lucidez e deixam o padecente perceber que o sofrimento é irreal, que é preciso acordar, sair do redemoinho, abrir os olhos, gritar por socorro, clamar por alguém no quarto ao lado, chacoalhar o corpo até despertar, fazer qualquer coisa para interromper o pânico. Esse é o grande trunfo, o último. Estender ao máximo o estertor, criar a impressão que mesmo sabendo que tudo é mentira, não será fácil sair desse mundo inóspito, dessa vertigem. Nesses últimos segundos, o clímax da impotência, o medo imemorial, o suor, a aceleração cardíaca. O grito.
Jamais permiti que minhas meninas chegassem a ponto de gritar. Ao primeiro gemido, acariciava-lhes os cabelos, beijava-lhes a face, murmurava palavras suaves e encorajadoras, jurando um amor maior do que eu tinha, por mais que fosse. Quando essas orações não adiantavam, esgotado o último carinho possível, se não se acalmavam, se não iam embora as visitas medonhas, se o retorno ao sono tranqüilo era impossível, então apertava suas mãos úmidas e aumentava o tom de voz, mantendo apenas a suavidade das palavras. Retornavam, subitamente. Então, abraçava seus corpos trêmulos.
Sabia que logo começariam a descrever a experiência horrível que acabaram de suportar. Ouvia tudo com atenção, fazia observações solidárias, elaborava interpretações complexas e, ao menor descuido, emendava uma conversa tola. Aos poucos, o sono delas ia voltando e eu logo poderia ver de novo o semblante imaculado.
Não é à toa que os amantes dizem que dormiram juntos. "Dormi com ela", propaga às escondidas o indiscreto enamorado. Conquistar alguém é arrastá-lo para a companhia mais íntima, para a troca mais in¬tensa. A sedução se consuma além do ato físico, quando o que se com¬partilha de mais profundo é, não o corpo em movimento, mas a entrega inanimada. Seduzir alguém é poder acordar ao seu lado.
Dos meus anjos venerados, hoje sei: lhes emprestei minhas noites e madrugadas. Não dormimos juntos, lamento. Mas, de bom grado, lhes daria novamente todas as horas em que fiquei acordado. Graças ao sono deles, fiz da minha insônia e da vigília uma dor justificada, uma perda consentida, uma espera apaixonada.
...
— Você ainda não dormiu?
— Não. Estava pensando.
— Em quê? Em mim?
— De certa forma. Dormiu bem?
— Bastante. De que forma?
— O que?
— Você pensava em mim.
— Fiquei olhando você dormir. Estava linda.
— Então dorme também para eu poder olhar você e achar lindo.
— Estou sem sono.
— Deita aqui. Eu faço carinho até você dormir.
— Não precisa. Você deve estar cansada.
— Quer que eu conte uma história?
— Qual?
— A de Morfeu, deus do sono, dos sonhos e dos pesadelos.
— Começa.
— Encosta a cabeça aqui. Fecha os olhos. Relaxa.
— Isso é bom.
--- Eu sei. Agora fica quietinho e pense num tempo distante, quando o mundo só era habitado por seres imortais...
* Jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.
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