quarta-feira, 10 de agosto de 2011











Envenenada

* Por Mara Narciso




A minha terceira filha, de quase um ano de idade, fora colocada no berço por mim, após amamentá-la. Debrucei-me sobre ela, ajeitando-a sobre o travesseiro e senti-me aliviada ao vê-la alimentada. O cortinado bem preso sob o colchão me dava uma sensação de segurança. Era uma tarde quente e estávamos num sítio próximo à cidade. Cheguei à janela e sorri olhando o verde sob o calor forte, que tanto me causa prazer. Voltando o olhar para dentro do quarto, vi a menina, fechei a janela, ao mesmo tempo em que enxerguei uma abelha rondando a minha criança, porém do lado de fora do filó. Fui em sua direção e afastei-a para fora, fechando a porta do quarto, saindo em seguida.
A abelha deu uma leve cambaleada em seu vôo, para em seguida voltar ao prumo, já na sala de jantar. Veio firme em minha direção e aplicou-me uma ferroada. Gritei, bati com força sobre ela, e ainda insatisfeita de vê-la caída no chão, esmaguei-a com o pé, sentindo exalar um odor característico. Levanto os olhos a tempo de ver um enxame invadindo o local, envolvendo-me. As abelhas vieram para cima de mim, zumbindo enfurecidas, grudando em meus cabelos, picando-me o rosto. Uma colméia em formação se torna defensiva, e deve ter sido isso que estava acontecendo. O ruído de milhares de abelhas (africanas? Africanizadas?) que chegaram não sei de onde, encheram o corredor. O furor dos insetos e as dores quentes das picadas misturaram-se com o meu pavor e tentativa de fuga. Correndo para fora da casa, gritei por socorro, e quem estava por perto me jogou um lençol. Tentei me esconder delas, mas, presa com as inimigas sob o mesmo espaço, vi que a situação tinha piorado. Errei na minha avaliação, pois deveria ter insistido nessa estratégia.
Cada picada era uma estocada de fogo rasgando a pele. Muitos ferrões estavam ficando dentro de mim. Uma dor ardida e aguda, junto com coceira, inchaço imediato e medo me fizeram continuar correndo em zique-zague, com os braços para cima, em volta da cabeça, tentando em vão me proteger, enquanto elas me atacavam. Corri pela estrada afora, e o enxame junto comigo. Mesmo com os olhos semicerrados, vi que pessoas tentavam fazer algo, para espantá-las, mas não dava tempo. Corri pela chácara e elas acabando comigo. De longe, as pessoas mal conseguiam me ver, fugindo sem direção com a cabeça envolta por uma nuvem escura.
As abelhas se aproximavam e se afastavam, conforme a minha energia na luta pela sobrevivência. Temi de fato pela minha vida. De olhos fechados, num desespero tresloucado, senti que não seria possível escapar da morte. Errada, abanava os insetos com as mãos, o que os deixava ainda mais irritados. A dor e o pavor misturavam-se em minha mente. Cansada, com as pernas bambas, fraqueza e sensação de desmaio, pensei que iria me acabar. Mas consegui continuar fugindo.
De olhos inchados, sem ver direito para onde ia, num esforço, dava rápidas espiadelas para não cair, e ao mesmo tempo chorava de dor, sentindo-me morrer envenenada. Não sei por quantos minutos fiquei nessa situação limite. Já imaginava o momento em que cairia morta, quando enxerguei um riozinho. Pulei na água e mergulhei a pele em brasa. Afundei na frescura do riacho e as minhas inimigas, meus carrascos, passaram direto por sobre a minha cabeça. Lá se foram elas, desorientadas.
Após segundos, saí do rio e retornei me arrastando. Pessoas me cercaram. A casa ainda estava perigosa para se entrar, mas depois, os poucos insetos restantes foram deixando o local. Sem um comando, perderam a direção e o prumo. A minha criança estava salva dentro do quarto, felizmente por mim fechado e dentro do berço com cortinado. Eu estava deformada, inchada, vermelha e sofrida, com enjôo, pressão baixa, palpitação e falta de ar, precisando ir urgente ao hospital. Tinha e por isso tomei um analgésico e anti-histamínico e fomos voando ao pronto-socorro, que não era longe. Tomei soro, adrenalina e corticóide intravenoso, pois a situação era grave. Os trinta e cinco ferrões foram extraídos um a um pelo médico. Sabia que cada um deles era uma abelha morta, que perde os seus órgãos vitais ao se defender. Mas isso não me consolava de jeito nenhum, por isso chorava.
Por sorte, escapei dessa situação gravíssima, já que veneno de abelha é mais perigoso do que o de jararaca. Além das dores e do terror, uma lição: nunca esmague uma abelha.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

4 comentários:

  1. Valeu o precioso conselho, Mara. E parabéns pela coragem ao arriscar a vida para proteger a filhinha. Uma verdadeira saga em busca da sobrevivência... Abraços.

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  2. Já fui picada por vários insetos e muitos deles na correria nem sei dizer o que eram, mas nunca dessa forma.
    Lembro-me de minha mãe que desesperada em nos proteger, enfrentou aranhas caranguejeiras...não
    gosto nem de lembrar.
    Ótimo texto Mara.
    Abraços

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  3. Dá aflição até mesmo relatar desse fato acontecido com uma amiga de minha tia. Eu era pequena quando soube e nunca me esqueci. Agora decidi contá-lo, até para chamar atenção sobre como é perigoso, podendo ser fatal. Achei que na primeira pessoa daria mais força ao desespero. Obrigada, gente, pelos comentários.

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  4. Uma só picada nos deixa transtornados, imagine então essa quantidade! Um texto de quande utilidade, Mara.
    Abraços!

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