Uva
* Por Urda Alice Klueger
Ela nasceu num dia 13 de março, faz quase 24 anos, e foi morar na minha casa, já que lá era o lugar onde vivia sua mãe. Nada sabíamos sobre bebês, e embora ela fosse um bebê de bom tamanho segundo os padrões médicos, eu a achava tão pequenina, biscuizinho de extrema fragilidade, que me dava medo de pegar no colo, temendo que pudesse se quebrar. Cabia deitada no assento de uma poltrona para uma pessoa, e desde os primeiros dias mostrou o quanto era esperta – num instantinho aprendeu a botar a boca no mundo se era colocada na caminha, já totalmente competente quando ao seu querer que lhe dizia que era melhor estar no colo da mãe.
Recebera o nome de Laura, e com um mês de vida, estava tão esperta que já se botava a chorar só de ouvir que a televisão era ligada, sinal certo de que alguma atenção lhe seria subtraída. Foi aí pela altura de um mês de vida, quando tanto eu quanto a mãe dela andávamos cansadas e irritadas com tanto choro, que resolvi aconselhar algo que lera em algum livro que ensinava alguma coisa sobre bebês. Era domingo à noite e sonhávamos poder assistir, pelo menos uma vezinha, ao programa Fantástico, que estava a começar, e fora só ligar a televisão para que aquela “menina dourada”, conforme dissera dela a avó ao conhecê-la, pusesse a boca no mundo.
- Há que se ensiná-la. Vamos botá-la na caminha e deixar chorar, que ela vai acabar dormindo.
Como criminosas, a mãe dela e eu assistimos ao pior Fantástico das nossas vidas, absolutamente angustiadas com aquele choro que agora já era bem forte, e que ficou vindo lá do quarto durante duas horas inteiras, em arremedados piques de desespero, enquanto olhávamos, sem ver, para a telinha, tendo certeza de que éramos as piores criaturas do mundo, por estarmos deixando aquele anjinho chorar assim.
O choro parou assim que o programa terminou e desligamos a televisão. Tudo ficou tão em silêncio que entrei em pânico.
- “Será que ela não morreu?” – a angústia assolava meu coração cheio de remorso quando, pé ante pé, adentrei ao quarto, apavorada com tal possibilidade. Silenciosamente, aproximei-me do bercinho espreitando a possibilidade de ainda qualquer possibilidade de vida diante daquele silêncio, para ficar cheia de surpresa: ressonando com a maior das tranqüilidades, Laura dormia sossegadamente, coisa que durou até a manhã seguinte!
Assim, aos poucos, fomos aprendendo a lidar e a criar uma pequena menina dourada, e muitas coisas foram acontecendo. O primeiro vestidinho que ela usou, meses depois, foi um de organdi cor-de-rosa, ganho da Nilza, a minha amiga que foi mãe da Nani, do Rodrigo e do Roberto. Tenho fotos dela com aquele vestidinho prematuro, passeando de carrinho num sol de inverno. É claro que ela reinava nas nossas vidas, que já não seria mais possível viver sem ela.
Eu não lembro se foi antes ou depois do vestidinho cor-de-rosa – sei que um dia ela disse a primeira palavra. Normalmente as crianças primeiro dizem “mamãe”, não é mesmo? Pois com Laura não foi assim. Eu brincava com ela deitada no sofá, toda linda e dourada, com os grandes olhos azuis muito expressivos rindo para mim, e de repente saiu a palavra – ela disse: “Uva”. Foi assim que traduziu meu nome. Disse “mamãe” um pouquinho depois.
Mesmo quando aprendeu a falar todas as coisas corretamente, o que aconteceu muito cedo, eu sempre continuei sendo “Uva” para ela. Quando ela entrou na escola, os amiguinhos dela também passaram a me chamar de “Uva”. Mesmo na adolescência, quando ela costumava vir almoçar na minha casa com seu grupo de amigos do colégio, todos eles ainda me chamavam de “Uva”.
Depois o mundo foi dando muitas voltas e acabamos ficando muito longe uma da outra. Ontem ela formou-se Assistente Social. Parece mentira que tanto tempo já passou! Ainda a vejo com os grandes olhos profundamente azuis cheios de riso, a dizer tão claramente a primeira palavra: “Uva”.
Parabéns da sua Uva, minha menina dourada! Que a vida possa lhe ser leve e boa!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
* Por Urda Alice Klueger
Ela nasceu num dia 13 de março, faz quase 24 anos, e foi morar na minha casa, já que lá era o lugar onde vivia sua mãe. Nada sabíamos sobre bebês, e embora ela fosse um bebê de bom tamanho segundo os padrões médicos, eu a achava tão pequenina, biscuizinho de extrema fragilidade, que me dava medo de pegar no colo, temendo que pudesse se quebrar. Cabia deitada no assento de uma poltrona para uma pessoa, e desde os primeiros dias mostrou o quanto era esperta – num instantinho aprendeu a botar a boca no mundo se era colocada na caminha, já totalmente competente quando ao seu querer que lhe dizia que era melhor estar no colo da mãe.
Recebera o nome de Laura, e com um mês de vida, estava tão esperta que já se botava a chorar só de ouvir que a televisão era ligada, sinal certo de que alguma atenção lhe seria subtraída. Foi aí pela altura de um mês de vida, quando tanto eu quanto a mãe dela andávamos cansadas e irritadas com tanto choro, que resolvi aconselhar algo que lera em algum livro que ensinava alguma coisa sobre bebês. Era domingo à noite e sonhávamos poder assistir, pelo menos uma vezinha, ao programa Fantástico, que estava a começar, e fora só ligar a televisão para que aquela “menina dourada”, conforme dissera dela a avó ao conhecê-la, pusesse a boca no mundo.
- Há que se ensiná-la. Vamos botá-la na caminha e deixar chorar, que ela vai acabar dormindo.
Como criminosas, a mãe dela e eu assistimos ao pior Fantástico das nossas vidas, absolutamente angustiadas com aquele choro que agora já era bem forte, e que ficou vindo lá do quarto durante duas horas inteiras, em arremedados piques de desespero, enquanto olhávamos, sem ver, para a telinha, tendo certeza de que éramos as piores criaturas do mundo, por estarmos deixando aquele anjinho chorar assim.
O choro parou assim que o programa terminou e desligamos a televisão. Tudo ficou tão em silêncio que entrei em pânico.
- “Será que ela não morreu?” – a angústia assolava meu coração cheio de remorso quando, pé ante pé, adentrei ao quarto, apavorada com tal possibilidade. Silenciosamente, aproximei-me do bercinho espreitando a possibilidade de ainda qualquer possibilidade de vida diante daquele silêncio, para ficar cheia de surpresa: ressonando com a maior das tranqüilidades, Laura dormia sossegadamente, coisa que durou até a manhã seguinte!
Assim, aos poucos, fomos aprendendo a lidar e a criar uma pequena menina dourada, e muitas coisas foram acontecendo. O primeiro vestidinho que ela usou, meses depois, foi um de organdi cor-de-rosa, ganho da Nilza, a minha amiga que foi mãe da Nani, do Rodrigo e do Roberto. Tenho fotos dela com aquele vestidinho prematuro, passeando de carrinho num sol de inverno. É claro que ela reinava nas nossas vidas, que já não seria mais possível viver sem ela.
Eu não lembro se foi antes ou depois do vestidinho cor-de-rosa – sei que um dia ela disse a primeira palavra. Normalmente as crianças primeiro dizem “mamãe”, não é mesmo? Pois com Laura não foi assim. Eu brincava com ela deitada no sofá, toda linda e dourada, com os grandes olhos azuis muito expressivos rindo para mim, e de repente saiu a palavra – ela disse: “Uva”. Foi assim que traduziu meu nome. Disse “mamãe” um pouquinho depois.
Mesmo quando aprendeu a falar todas as coisas corretamente, o que aconteceu muito cedo, eu sempre continuei sendo “Uva” para ela. Quando ela entrou na escola, os amiguinhos dela também passaram a me chamar de “Uva”. Mesmo na adolescência, quando ela costumava vir almoçar na minha casa com seu grupo de amigos do colégio, todos eles ainda me chamavam de “Uva”.
Depois o mundo foi dando muitas voltas e acabamos ficando muito longe uma da outra. Ontem ela formou-se Assistente Social. Parece mentira que tanto tempo já passou! Ainda a vejo com os grandes olhos profundamente azuis cheios de riso, a dizer tão claramente a primeira palavra: “Uva”.
Parabéns da sua Uva, minha menina dourada! Que a vida possa lhe ser leve e boa!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
No geral, o som da TV embala o sono das menininhas. O caso dessa criança Urda, foi mesmo uma exceção.
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