sexta-feira, 8 de julho de 2011



Seu Chico na Parada Gay

* Por Fausto Brignol

Pois não é que o seu Chico foi à parada gay? Não por orientação sexual, pois quanto a isso diz que sempre se orientou muito bem desde rapazito com as moças da casa da dona Ideli, que Deus a tenha, e depois casou com mulher de verdade e continua gostando do sexo oposto, pois tem como lema “Viva a Diversidade!” e como mote “Nada como a diferença!”, mas estava em São Paulo de passada depois de comprar uns pastos lá no Mato Grosso e pensou em tomar um café na terra do café, enveredou pela avenida Paulista e se viu perdido numa multidão colorida que gritava e cantava.

Chegou a pensar que era carnaval, tamanho o entrevero e quantidade de fantasias. Foi quando sentiu algo estranho na região glútea, olhou pro lado e viu que estava sendo bolinado por um dos fantasiados.

- E aí seu Chico?

- Mas dei-lhe um talabascaço que nem graça ele achou e já ia puxar do facão e degolar ali mesmo, quando lembrei que tinha deixado todos os trens no hotel, até a tesoura de cortar as unhas dos pés e tive que me contentar em dar mais uns tapas nas orelhas do fresco quando fui cercado por todos os lados por umas mulheres musculosas que me empurraram, aquelas que calçam 44, que Deus as perdoe, e quando fui ver eu estava no meio de um casamento – quem havéra de ver!

- Mas que casamento, seu Chico? Ali, no meio da avenida Paulista?

- Mas nem lhe conto! Até parecia pesadelo! Dois homens se beijando – que de homens só tinham a feição - e um outro vestido de padre, que deveria ser maricas também, fingindo que abençoava e eu ali, perdido que nem cachorro em procissão.

- Mas quem diria!...

- Nem contando eu acredito! E como eu estava pilchado em reverência aos pagos e para que não me confundissem naquela cidade de veados, foi por isso mesmo que me confundiram e até pediram que eu fosse o padrinho e entregasse as alianças para a noiva, que era o mais afrescalhado dos dois, vestido todo de rosa e pintado que nem mulher de zona.

- E o senhor serviu de padrinho?

- E fazer o quê?! Cercado, perigando até a vida se eu recusasse e chegaram a dizer que o prefeito e o governador estavam assistindo a cerimônia – você não há de ver a que ponto chegaram aqueles paulistas! – e eu tonto no meio daquela bicharada, me fiz de sonso, que pra bobo eu não sirvo, peguei as alianças e enfiei nos dedos dos dois e o que parecia homem até parecia homem – era o noivo! – e se beijaram ali na minha frente e todos os outros também começaram a se beijar e teve um que queria me agarrar e me dar um beijo – o senhor nem imagine a minha indignação! – e eu lhe dei um repelão dizendo que estava me sentindo mal e ele gritou um gritinho esganiçado e disse que ia me levar no banheiro, que tinha um ali pertinho – imagina só a intenção do qüera – e foi aí que eu encomendei a minha alma a Deus e fiz aquilo.

- Mas que situação... O que foi que o senhor fez, seu Chico?

- Como última saída, só pra me livrar daquele apertume e pra evitar de ter que matar um, mesmo que fosse só esgoelando eu tive que ser indecente.

- O senhor ta querendo me dizer?...

- Não me interprete mal, que eu não fiz o que o senhor está pensando, que seria melhor morrer que deixar de ser homem, não foi aquele tipo de indecência, nem parecido!, que senão eu não tinha nem voltado para o meu Rio Grande, tapado de vergonha como iria ficar! Não senhor! Indecências, tem várias e eu fui muito bem educado para evitar todas elas, mas naquele momento de extrema necessidade eu tive que apelar.

- Mas não me deixe curioso, seu Chico! Conte logo!

- Pois botei dois dedos na garganta e vomitei ali mesmo, cheio de vergonha, mas fiz aquilo e foi a minha salvação, acredite, porque deu um reboliço e correram para todos os lados, gritando fininho e dizendo “que cheiro ruim!” e outras coisas lá naquela gíria bichesca e eu fui saindo devagar, fingindo que tava passando mal e todos se arredando, que era mais o que eu queria e chegaram uns polícia tentando me ajudar e eu disse que não precisava, que as minhas pilchas não eram fantasia e que eu podia me agüentar sozinho e me arredei daquela multidão o mais que pude e quando vi já tava em outra rua e chamei um táxi e fui pro hotel.

- Que alívio, hein seu Chico?

- Alívio é dizer pouco! Cheguei no hotel mais morto que vivo.

- E depois, pegou o avião e veio direto?

- Quase fiz isso. Mas preferi tomar um banho, trocar de roupa e descer pra comer alguma coisa, enquanto botava as idéias no lugar.

- E fez muito bem, seu Chico. Já imaginou se o senhor estivesse com o seu facão lá no meio da parada gay?

- Nem quero pensar nisso, que na hora eu até pensei em fazer uma morte, mas foi Deus que me orientou a não sair de arma branca. Mas lá embaixo, no restaurante, eu já estava tranqüilito, depois de pedir o meu assado com um vinhozinho, que ninguém é de ferro e a vida é curta, e imagina só o que eu vi?

- Viu mais gays, seu Chico?

- Pois é verdade! Tinha um grupo voltando da parada – e foi o garçom que me contou que tinha sido uma parada guei, que deve ser uma palavra lá na língua deles pra distinguir veado...

- Me permita, seu Chico: gay é uma palavra inglesa, que significa divertido, engraçado, alegre.

- Pois lá estava aquele grupo de alegres, aquele mesmo do casamento na rua e ainda vestidos com as mesmas roupas, e quando eu perguntei ao garçom o que aqueles frescos faziam ali, o garçom me disse a mesma coisa que o senhor – que não eram frescos, mas gueis - só que na hora eu não atentei para o significado, mas deixei por isso mesmo, me fiz de morto, virei de lado e comecei a comer e a lembrar desta abençoada terra, que também tem os seus gueis, que isso tem em tudo que é lugar como se fosse uma advertência de Deus, mas que não se metem com homem de verdade, que Deus os livre!

- E então, seu Chico?

- E então que quando eu já estava achando até engraçada aquela aventura da tarde com os rapazes alegres ou gueis, como quiserem que pra mim não tem diferença no conteúdo, se chegaram os dois noivos pra minha mesa. Tinham me reconhecido, imagine o senhor!

- Mas que causo, seu Chico! Até parecia perseguição...

- Assombração, é o que o senhor quer dizer. Mas chegaram muito educadamente e me perguntaram se eu já estava bem do estômago. Respondi que sim, e que me desculpassem os meus modos naquela tarde, que eu não sabia que era uma parada guei e que sentassem se assim desejavam.

- E...?

- Pois não se fizeram de rogados. Puxaram as cadeiras, sentaram, se apresentaram e disseram que todo ano tinha uma parada assim lá em São Paulo, que até padre participa e mais autoridades e políticos e que era um movimento para lutar contra os homens fóbicos. Perguntei quem eram esses tais de homens fóbicos, eles riram e disseram que eram pessoas que não gostavam deles e que tinha uns que até perseguiam e matavam os gueis.

- E é verdade, seu Chico.

- Mas eu não sabia e lembrei de imediato do meu pensamento e da minha raiva, quando me bolinaram de tarde e me senti envergonhado e disse a eles que tinha gente pra tudo, mas que quem mata não precisa ser fóbico, porque bandido é bandido em qualquer lugar, mas que não me confundissem, que eu não era – e não sou, o senhor me conhece! – de violência. Mas que tinha me sentido perdido naquela multidão e passado mal devido ao aperto. Tentei me desculpar como pude; o senhor há de entender que aquela era outra situação e aqueles rapazes já não me pareciam mais tão estranhos, mesmo com aquelas pinturas na cara.

- O senhor fez muito bem seu Chico. Nem tudo que brilha é ouro.

- E Deus existe para todos, o senhor há de convir – até para os veadinhos, como dizia São Francisco – e aqueles moços alegres não tinham toda a culpa de serem assim, hoje em dia se coloca muito hormônio nessa comida industrializada e há quem diga que aquela poluição da São Paulo altera as pessoas. E eu estava pensando assim, já mais manso, e aceitando conversar uma coisa e outra com os dois gueis, porque o senhor sabe que eu sempre fui a favor da diversidade e da diferença – embora não tanto! – quando eles me convidaram pra uma festa.

- Pra uma festa, seu Chico? Uma festa gay?

- Não disseram assim. Disseram que era uma festa de São João, pois estamos no mês, o senhor sabe, e que não aceitavam recusa.

- E o senhor foi, seu Chico?

- De início, eu fiquei meio assim, querendo me desculpar que eu tinha viagem marcada, mas percebi que eles começavam a se sentir ofendidos e acabei concordando com a condição que eu teria que voltar mais cedo.

- Não me diga!

- Pois lhe digo. Confesso que me bateu a curiosidade e outro pouco por educação. Fui com aqueles dois, os noivos gueis, que insistiam que eu era padrinho deles e mais uma turma de travestidos, os que estavam jantando no hotel. Foi numa chácara, que eles chamam de sítio, não muito distante. E tinha até fogueira, docinhos e tudo que uma festa de São João tem que ter. Tinha até criançada brincando de roda.

- E o senhor no meio dos gays...

- Nem todos. Nem todos eram gueis. Aos poucos fui me acostumando ao ambiente alegre e descontraído e fui ficando. Já não me importavam as frescuras dos gueis, porque o estranho seria se não tivesse frescura, nem as vozes de falsete me perturbavam, nem as mulheres gueis que se tratavam com tanto carinho que chegou a me enternecer. E dizer que eu as tratava de sapatão!

- Todos tem direito à própria vida, seu Chico, do jeito que desejarem, desde que não incomodem o próximo.

- Foi o que eu pensei também. Aos poucos, mas pensei. E acabei me envergonhando com a minha atitude de grosso naquela tarde. Me trataram com toda a educação e carinho, simularam outro casamento, só que casamento na roça e eu até me propus a ser o padrinho de novo e foi tudo muito alegre e muito festivo. Os noivos eram duas gueis, mas naquela hora eu nem estava ligando se eram dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher. Quando começou a amanhecer e o cansaço bateu, disse que era hora de voltar, que eu teria que viajar de manhã, o mais tardar de tarde e um deles se dispôs a me levar para o hotel. Abracei a todos, sem medo dos abraços, beijei as moças e desejei muitas felicidades e lhes dei até uma prenda – um isqueiro antigo, por falta de melhor presente, afinal eu era o padrinho! -, trocamos endereços e informações pessoais e voltei.

- Mas que bonito, seu Chico!

- Sabe, estes campos, esta terra que às vezes fica árida, esta vida que às vezes fica muito repetida e chata, rotineira, a educação que os nossos pais nos deram quando crianças, que era a que eles consideravam a melhor... Tudo isso nos deixa com idéias pesadas sobre tudo.

- Nos deixa inflexíveis, não é seu Chico? Com medo de ir além também no modo de ser e de pensar...

- Pois era isso que eu pensava quando estava chegando aqui e antes de encontrar o senhor e lhe contar essas aventuras. Vivendo e aprendendo... Sabe, ontem, quando saí de casa pra comprar uma coisitas que faltavam lá em casa, por ordem da minha patroa, eu vi o filho da dona Isolda, aquele que é meio guei. Antes, eu passava por ele reto, sem nem olhar direito. Pois imagine que eu o chamei, perguntei pela família, como ia passando a sua mãe, me informei sobre a vida dele e me ofereci para o caso de alguma necessidade. Sem me forçar a nada, de maneira natural. E sabe o que mais?

- O que mais, seu Chico?

- Os olhos do rapaz brilhavam enquanto eu falava com ele. E eu me senti mais leve, mais inteiro, mais homem, mais humano.

• Poeta, jornalista e escritor

Um comentário:

  1. Mesmo ainda passando por uma pequena tempestade
    não poderia deixar de elogiar esse texto. De uma
    doçura tão grande que me emocionou.
    Lindo.
    Abraços

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