Judas: a vez dos traidores
* Por Deonísio da Silva
No mais curto versículo da Bíblia, São João diz que Jesus chorou. Noutro, mais breve ainda, Judas diz que Jesus riu. Um revelou o choro do Mestre num evangelho aceito pela Igreja. Outro manifestou sua alegria num evangelho apócrifo.
Trata-se do Evangelho de Judas, que chegou com alarde. A National Geographic dedicou o tema da capa de sua tradicional revista e exibiu documentário sobre o manuscrito polêmico, lançado nos EUA, dia 6 de abril deste ano.
São 26 folhas de papiro, de um total de 66, encontradas na década de 1970 numa caverna, no deserto do Egito. Da autoria anônima de cristãos gnósticos, o documento foi escrito originalmente em grego no ano 180 e traduzido para o copta entre 220 e 340.
Vários escritores se ocuparam do traidor de Jesus. Jorge Luís Borges tratou do caso Judas em vários textos, entre os quais A Seita dos Trinta e Três Versões de Judas. Neste último refere o livro Kristus och Judas, de Nils Runeberg.
O autor sueco sustentou a tese de que não era necessário trair Jesus. Ele pregava todos os dias, inclusive aprontou feio na expulsão dos agiotas e mercadores do templo, de modo que era muito conhecido de todos, inclusive das autoridades romanas e judaicas.
Em outros textos, Judas teria entregue Jesus para forçá-lo a declarar sua divindade. No caso do manuscrito agora encontrado, Jesus incentiva Judas a completar a operação porque tinha chegado a hora da libertação: o filho de Deus deixaria a provisória morada do corpo.
O autor inglês Thomas de Quincey, tratando de Judas, foi radical: “Não uma, mas todas as coisas que a tradição atribui a Judas são falsas”.
Também no Novo Testamento as narrativas são controversas. O Evangelho de São Mateus diz que Judas enforcou-se no galho de uma árvore, tornando-se um suicida emblemático.
Os Atos dos Apóstolos contam as coisas de modo diferente: nem o galho da árvore quis ou pôde segurar o corpo e ele despencou sobre uma pedreira. Na queda, a barriga abriu-se (“quebrou as costas”, dizem os Atos), e suas vísceras se espalharam no chão. Tendo havido muito sangue derramado, aquele campo foi chamado Acéldama, campo de sangue em hebraico.
Outra versão diz que Judas, arrependido, devolveu os trinta dinheiros (trinta siclos, preço de um escravo, na época) e retirou-se para o deserto, tornando-se piedoso eremita. Uma outra diz que, com o dinheiro, o traidor comprou aquele pedaço de terra. De todo modo, o terreno foi utilizado mais tarde para cemitério de estrangeiros.
A complexa personagem de Judas, cujo perfil controverso sofreu tantos acréscimos e retificações ao longo da História, é fascinante. Foi usada para propagar um bem organizado anti-semitismo, já que nos primeiros séculos, com o fim de mostrar-se útil ao império romano, a Igreja fez questão de confundir a função de Judas com as de Caifás e Ananás, levando a uma trama no assassinato de Jesus, que livrava a cara de Pôncio Pilatos, o grande responsável, e inocentava os romanos ao creditar a judeus a delação, tortura e morte de Jesus.
O Evangelho de Judas integra o rol das heresias dos primeiros séculos, de que há boas amostras em Contra as Heresias, de Santo Irineu, já em segunda edição pela editora Paulus, que integra a coleção Patrística.
Este interesse pelos padres escritores dos primeiros séculos surgiu nos anos 1940, na Europa, especialmente na França, onde uma coleção intitulada Sources Chrétiennes já tem mais de 400 títulos. Reflete um movimento liderado por vários intelectuais cristãos, entre os quais o cardeal Jean Daniélou, da Academia Francesa, falecido em 1974.
Existe um movimento internacional que tem o fim de banalizar alguns poucos santuários restantes, vez que todo nicho do sagrado assemelha-se hostil ao projeto de tudo banalizar. O Evangelho de Judas parece fazer parte da nova onda. E a investida contra a Igreja integra a estratégia.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
* Por Deonísio da Silva
No mais curto versículo da Bíblia, São João diz que Jesus chorou. Noutro, mais breve ainda, Judas diz que Jesus riu. Um revelou o choro do Mestre num evangelho aceito pela Igreja. Outro manifestou sua alegria num evangelho apócrifo.
Trata-se do Evangelho de Judas, que chegou com alarde. A National Geographic dedicou o tema da capa de sua tradicional revista e exibiu documentário sobre o manuscrito polêmico, lançado nos EUA, dia 6 de abril deste ano.
São 26 folhas de papiro, de um total de 66, encontradas na década de 1970 numa caverna, no deserto do Egito. Da autoria anônima de cristãos gnósticos, o documento foi escrito originalmente em grego no ano 180 e traduzido para o copta entre 220 e 340.
Vários escritores se ocuparam do traidor de Jesus. Jorge Luís Borges tratou do caso Judas em vários textos, entre os quais A Seita dos Trinta e Três Versões de Judas. Neste último refere o livro Kristus och Judas, de Nils Runeberg.
O autor sueco sustentou a tese de que não era necessário trair Jesus. Ele pregava todos os dias, inclusive aprontou feio na expulsão dos agiotas e mercadores do templo, de modo que era muito conhecido de todos, inclusive das autoridades romanas e judaicas.
Em outros textos, Judas teria entregue Jesus para forçá-lo a declarar sua divindade. No caso do manuscrito agora encontrado, Jesus incentiva Judas a completar a operação porque tinha chegado a hora da libertação: o filho de Deus deixaria a provisória morada do corpo.
O autor inglês Thomas de Quincey, tratando de Judas, foi radical: “Não uma, mas todas as coisas que a tradição atribui a Judas são falsas”.
Também no Novo Testamento as narrativas são controversas. O Evangelho de São Mateus diz que Judas enforcou-se no galho de uma árvore, tornando-se um suicida emblemático.
Os Atos dos Apóstolos contam as coisas de modo diferente: nem o galho da árvore quis ou pôde segurar o corpo e ele despencou sobre uma pedreira. Na queda, a barriga abriu-se (“quebrou as costas”, dizem os Atos), e suas vísceras se espalharam no chão. Tendo havido muito sangue derramado, aquele campo foi chamado Acéldama, campo de sangue em hebraico.
Outra versão diz que Judas, arrependido, devolveu os trinta dinheiros (trinta siclos, preço de um escravo, na época) e retirou-se para o deserto, tornando-se piedoso eremita. Uma outra diz que, com o dinheiro, o traidor comprou aquele pedaço de terra. De todo modo, o terreno foi utilizado mais tarde para cemitério de estrangeiros.
A complexa personagem de Judas, cujo perfil controverso sofreu tantos acréscimos e retificações ao longo da História, é fascinante. Foi usada para propagar um bem organizado anti-semitismo, já que nos primeiros séculos, com o fim de mostrar-se útil ao império romano, a Igreja fez questão de confundir a função de Judas com as de Caifás e Ananás, levando a uma trama no assassinato de Jesus, que livrava a cara de Pôncio Pilatos, o grande responsável, e inocentava os romanos ao creditar a judeus a delação, tortura e morte de Jesus.
O Evangelho de Judas integra o rol das heresias dos primeiros séculos, de que há boas amostras em Contra as Heresias, de Santo Irineu, já em segunda edição pela editora Paulus, que integra a coleção Patrística.
Este interesse pelos padres escritores dos primeiros séculos surgiu nos anos 1940, na Europa, especialmente na França, onde uma coleção intitulada Sources Chrétiennes já tem mais de 400 títulos. Reflete um movimento liderado por vários intelectuais cristãos, entre os quais o cardeal Jean Daniélou, da Academia Francesa, falecido em 1974.
Existe um movimento internacional que tem o fim de banalizar alguns poucos santuários restantes, vez que todo nicho do sagrado assemelha-se hostil ao projeto de tudo banalizar. O Evangelho de Judas parece fazer parte da nova onda. E a investida contra a Igreja integra a estratégia.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
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