

A sede de existir me guiou até aqui
* Por Eduardo Murta
São dois os velhinhos às margens da Lagoa da Pampulha naquele fim de tarde. Sonolenta calmaria. Dividem as silhuetas com a ondulação oceânica da Igrejinha de São Francisco. Um brinco àquela paisagem. Ambos falam baixo, pausado, e daqui quase nada se ouve do que contam. Mas as mãos são capazes de apontar minúcias reveladoras. Uma delas desponta, sinalizando eternidade.
Nem isso instaura concordância. O da esquerda baliza a cabeça negativamente e desacelera o diálogo, num recuo pensado. Alimenta-se do charuto já curto, as brasas intensas. Dá impressão de provocar. E deixa a fumaça reinar entre ambos, como houvesse um hiato de sombras naquele encontro. Talvez houvesse, inda que as cadeiras de balanço cortem o ar no mesmo e preciso movimento.
Alargo a observação, pinço daqui uma só frase e ela é o bastante a que tudo se compreenda. O da direita, que soa ser uma espécie de carpinteiro-mor, parece sugerir a passagem dessa para outra estação, em que o homem que lhe ouve ganharia leveza de anjos em spa espiritual. Expõe, e explica que seria exatamente como a sensação ao se ver as obras dele, agora candidato, espalhadas pelos vários cantos do mundo: como céus e terra flutuassem.
E descreve arcos, parábolas, colunas, a ponto de surpreender o interlocutor, tamanha riqueza das simbologias. O da esquerda então pergunta se, como ele, era também arquiteto. A resposta veio inconclusiva e, contra-senso, cercada por uma textura que lhe emprestava robustez absoluta. Disse que era um pouco de cada coisa. Do vento ao barro, às escalas geométricas, ao silêncio e aos fenômenos que ciência alguma explicaria.
Ouvindo assim, o velhinho se ajeitou à cadeira. Pigarreou. Pôs olhar fixo no visitante, a conferir se já não o vira numa de suas tantas andanças pelo mundo. A face lhe remetia a familiaridade, mas resistia a ter um pingo de convicção. Temor, talvez, de que fosse exatamente o que imaginava.
Daí deu a falar sobre aquecimento global, calotas polares, novas constelações, tratados próprios da poesia no Oriente Médio e chás que curavam de insônia a mal de amor. Ia prosseguindo, elencando os pássaros que retornavam à cena urbana, quando os dedos leves, beirando o celestial, lhe apartaram. Bem-vindas as amenidades, mas fora ali falar de assunto de outra ordem.
As miradas se cruzaram neste instante, e os sentidos foram saltando-lhe, como rãs que reverenciam a chuva breve. Agora entendera, sem porém compreender. Que audiências divinas eram aquelas, se ele figura no clube de ateu declarado e militante? Gestos trêmulos, interrompeu o balanço de sua cadeira, a que se movesse em freqüência distinta.
O movimento uniforme, ali, seria sinal de concordância à transição para plano que não pertencia à natureza dos vivos. Fechou os olhos, deixou que tudo estacionasse, e os reabriu em seguida. Conferiu ao lado o assento, e eram três garças – só elas -, das de um branco em neve absoluto, lhe contemplando como a uma obra de arte. A caminho dos 103 anos, Niemeyer, Oscar, o arquiteto, respirou aliviado. Bradou pelos assistentes. Pediu papel, lápis preto. Estava mais inspirado do que nunca. E a sede de existência era o que o guiava.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
São dois os velhinhos às margens da Lagoa da Pampulha naquele fim de tarde. Sonolenta calmaria. Dividem as silhuetas com a ondulação oceânica da Igrejinha de São Francisco. Um brinco àquela paisagem. Ambos falam baixo, pausado, e daqui quase nada se ouve do que contam. Mas as mãos são capazes de apontar minúcias reveladoras. Uma delas desponta, sinalizando eternidade.
Nem isso instaura concordância. O da esquerda baliza a cabeça negativamente e desacelera o diálogo, num recuo pensado. Alimenta-se do charuto já curto, as brasas intensas. Dá impressão de provocar. E deixa a fumaça reinar entre ambos, como houvesse um hiato de sombras naquele encontro. Talvez houvesse, inda que as cadeiras de balanço cortem o ar no mesmo e preciso movimento.
Alargo a observação, pinço daqui uma só frase e ela é o bastante a que tudo se compreenda. O da direita, que soa ser uma espécie de carpinteiro-mor, parece sugerir a passagem dessa para outra estação, em que o homem que lhe ouve ganharia leveza de anjos em spa espiritual. Expõe, e explica que seria exatamente como a sensação ao se ver as obras dele, agora candidato, espalhadas pelos vários cantos do mundo: como céus e terra flutuassem.
E descreve arcos, parábolas, colunas, a ponto de surpreender o interlocutor, tamanha riqueza das simbologias. O da esquerda então pergunta se, como ele, era também arquiteto. A resposta veio inconclusiva e, contra-senso, cercada por uma textura que lhe emprestava robustez absoluta. Disse que era um pouco de cada coisa. Do vento ao barro, às escalas geométricas, ao silêncio e aos fenômenos que ciência alguma explicaria.
Ouvindo assim, o velhinho se ajeitou à cadeira. Pigarreou. Pôs olhar fixo no visitante, a conferir se já não o vira numa de suas tantas andanças pelo mundo. A face lhe remetia a familiaridade, mas resistia a ter um pingo de convicção. Temor, talvez, de que fosse exatamente o que imaginava.
Daí deu a falar sobre aquecimento global, calotas polares, novas constelações, tratados próprios da poesia no Oriente Médio e chás que curavam de insônia a mal de amor. Ia prosseguindo, elencando os pássaros que retornavam à cena urbana, quando os dedos leves, beirando o celestial, lhe apartaram. Bem-vindas as amenidades, mas fora ali falar de assunto de outra ordem.
As miradas se cruzaram neste instante, e os sentidos foram saltando-lhe, como rãs que reverenciam a chuva breve. Agora entendera, sem porém compreender. Que audiências divinas eram aquelas, se ele figura no clube de ateu declarado e militante? Gestos trêmulos, interrompeu o balanço de sua cadeira, a que se movesse em freqüência distinta.
O movimento uniforme, ali, seria sinal de concordância à transição para plano que não pertencia à natureza dos vivos. Fechou os olhos, deixou que tudo estacionasse, e os reabriu em seguida. Conferiu ao lado o assento, e eram três garças – só elas -, das de um branco em neve absoluto, lhe contemplando como a uma obra de arte. A caminho dos 103 anos, Niemeyer, Oscar, o arquiteto, respirou aliviado. Bradou pelos assistentes. Pediu papel, lápis preto. Estava mais inspirado do que nunca. E a sede de existência era o que o guiava.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Essa sede é incessante, jamais
ResponderExcluirse esgota.
Belo texto Eduardo.
beijos
A sede de viver jamais se esgota? Soube que ele passou mal uns dias atrás.
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