segunda-feira, 26 de julho de 2010











Há lembranças borboletando-lhe o coração

* Por Eduardo Murta

Eram três os amigos à mesa, mirem, se divertindo com aqueles artifícios de mensurar o que era intangível. Mapear o ar, como se do amor houvesse escalas banais de grandeza. Adib, Salustiano e Tavares enumerando troféus de conquista – das sutis às que lembravam represas se rompendo rio abaixo. Quem ouvia já não distinguia entre ficção turbinada e verdade lavrada em cartório. Inda que jurassem, a lista de 17 cervejas, quatro rabos de galo e seis caipirinhas autorizava a desconfiança plena.

Mas foi bonito ouvir. Adib, nariz em curvas árabes, o primeiro a pedir silêncio. E reverência ao que iria revelar. Numa Quarta-feira de Cinzas a conhecera. Priscila. Fantasia já desarmada pelo sereno de fim de festa, maquiagem borrada, bastou que os olhos se cruzassem. Ele, oito doses acima dos mortais, não pigarreou. Ela, imitando Colombina decidida, não hesitou. Em um minuto contabilizariam 42 formas variadas de beijos. E sinceros, creiam.

Em casa – e aportaram na dela – gastariam manhã e tarde sob banho de leite e terminariam com ele às algemas, gostando. A mulher lhe passando mel ao corpo e cevando-lhe uvas aos lábios. Acabou trancafiado por uma semana – feliz, confirmaria – submetido aos rituais da cama. Sem que convencesse a plateia, elencou: em sete dias, havia levado a amante a 83 orgasmos, dos discretos aos múltiplos.

Partiu sob a promessa de que se casariam na semana seguinte, mas retrocedeu. Se disfarçou sob peruca, bigode postiço, ternos em naftalina. Atormentava-lhe aquela forma de querer atropelado. Temia os desfechos... Embaraçado diante das minúcias descritas aos companheiros, desconversou. E o amigo Salustiano, havia encontrado amor com mais fôlego de gata, como ele achara? Seguro que sim. Escutassem. Marejou as órbitas à simples menção do nome: Gal. Era uma terça-feira inocente, ele mariposando na livraria de costume.

Puxou um, quatro, cinco títulos e, no sexto, as mãos fizeram rigorosamente o mesmo caminho, até se esbarrarem na lombada de um livro de Manoel de Barros. Enxergaram reticências poéticas naquilo. E mergulharam em nove meses – sem que faltasse um dia sequer – de erotismo vitaminado em poesia. Frases inteiras entremeando cada movimento. Mas Gal, aberta a todas as literaturas, impôs-lhe torcicolo à alma ao trazer a poética punk para os lençóis. Julgou sacrilégio, e a despachou num hai-kai amargurado.

Desde então, ela amanhece à porta dele. Chora, degustando ramos de jasmim combinados com porções de pimenta malagueta. Era a tradução exata, bradava, do que Salustiano lhe fizera experimentar, como servindo a dois temperos contrários. Ele simulando indiferença, carregaria aquela sombra destino afora. A um passo de chorar, invocou Tavares. A voz do parceiro chegava embargada. Cravou memória ali pelo início dos anos 90. Ensaiou uma pausa sugestiva, a claque acompanhou, a ponto de permitir notar seus batimentos cardíacos.

Haviam se conhecido numa partida de futebol. A arquibancada tomada pelo mundaréu de gente, foi aquele jeito de fada uniformizada que embebedou-lhe as emoções. Viu magia até na forma com que roia as unhas, nas expressões escolhidas para praguejar o juiz. No quinto gol, rompeu pelas cadeiras e a abraçou. Já amava ali do perfume – francês, tinha certeza – ao esmalte que levava nos pés. Beijou longo, longo. Como se a vida inteira tivesse esperado por aquela boca. Só aí soube-lhe o nome: Lira.

Tavares se recorda em minúcias dos jantares, dos seios rosados, de cada peça de museu, do tesão premiado, dos filmes e, claro, dos jogos que partilhariam. Tudo em pura celebração à alegria. As alianças que ela havia mandado cravar em turmalinas. E a promessa, naquela noite, de que seria por todo o sempre. Cruzaram a madrugada em encenações lúdicas. Ela soprando bolhinhas de sabão, ele, candura, vazando aqueles círculos encantados com um inocente espinho de laranjeira.

Pela manhã, chamou-lhe o nome. Lira!!! Sem resposta. Procurou. Lira!!! Nenhum rastro. Só o anel turmalinado, sobre o criado-mudo. E duas... duas... engasgou ao descrever... duas asas de borboleta junto ao travesseiro. Sobraram-lhe a esperança, agora em ossos, e, ainda contando, sacou do bolso esquerdo a carteira, o espinho, o velho espinho de laranjeira. Delicadamente borboletando-lhe as lembranças e o coração.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

Um comentário:

  1. Três histórias que todo e qualquer um não dispensaria. Gostoso seria viver, delicioso foi ler. Amar sob a sua ótica é muito melhor.

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