quarta-feira, 21 de julho de 2010











Os inimigos podem dormir quietinhos

* Por Mara Narciso

As meninas correm pelo pátio da escola e o menino corre atrás. Leva nas mãos o seu troféu: um morcego. Para ele, afugentar as colegas medrosas é uma festa. A gritaria impera nos corredores. As meninas na frente e o menino, balançando ameaçadoramente o bicho, finge atirar o mamífero nelas. Mas uma menina feia, e até um pouco desnutrida, avança sobre ele, toma o morcego, rasga o infeliz e o joga em cima do brincalhão de mau-gosto. A surpresa o deixa atônito e sem ação. Acabou a brincadeira.

Quanto menor o ferrão, mais perigoso é o veneno do escorpião. Podem sobreviver até um ano sem alimento (comem insetos e aranhas), e em situações extremas, praticam o canibalismo. Esses aracnídeos se escondem em toalhas e roupas e picam os distraídos quando enxugam o rosto, se vestem ou se calçam. A dor é lancinante e nas crianças pequenas, a peçonha pode resultar em morte. Os escorpiões gostam de entulhos onde se escondem e procriam. Após os ataques, procurar pelo soro.

As jararacas (gênero botrópico), e as cascavéis (gênero crotalus) oferecem risco de vida a quem sofrer uma picada. O veneno pode causar necrose da extremidade e morte, algumas delas em hemorragia ou insuficiência renal. Evitar os locais onde os animais habitam, e não tocar os répteis, mesmo depois de mortos, são conselhos úteis. Levá-los, junto com a vítima, ao hospital mais próximo, e fazer uso do soro antiofídico o quanto antes.

Muitos não têm medo de barbeiro, o Triatoma infestans, mas este continua a oferecer risco e a causar o Mal de Chagas. A doença ainda é transmitida pela picada do inseto, por transfusão de sangue, e até por via oral, após a ingestão de caldo-de-cana e suco de açaí contaminados pelo Trypanosoma cruzi e não pasteurizados
.
Circulou na internet, tempos atrás, figuras assustadoras das consequências da picada da aranha-marrom, do gênero loxoceles, numa mão humana. Cerca de doze a vinte e quatro horas após o ataque aracnídeo, geralmente pouco doloroso, aparecem vermelhidão e edema, depois escurecimento dos tecidos que se tornam frágeis e necróticos, se soltam, expondo tendões, nervos e até ossos. O veneno possui enzimas que destroem os tecidos afetados. A aparência dos bichos não é nada temível. Quando alertas desse tipo acontecem, as pessoas ficam atentas, assustadas com qualquer invasor. Os entendidos dizem para não matar as aranhas, pois nessa tentativa a pessoa poderá ser picada. Mas se o bicho escapulir e depois atacar?

A mulher chegou da festa tão cansada que desmaiou, embora a agitação do som e dos acontecimentos a tenha acordado apenas três horas mais tarde. Com um tampão nos olhos, preventivamente colocados ao se deitar, enfiou o rosto no edredom numa inútil tentativa de novamente conciliar o sono. Ainda era cedo, o barulho do dia ainda não começara, tudo era silêncio. Tentando relaxar mais, abraçou o travesseiro, procurando uma posição mais cômoda, e nesse gesto, enfiou a mão dentro da fronha numa pequena abertura lateral. Sentiu na maciez do tecido alguma coisa áspera, cortante, estranha: um animal? Puxou a mão rapidamente. Não sabia o que era, mas sentiu que era alguma coisa viva. Sentou-se na cama, segurou o travesseiro, olhou cautelosamente pela fenda, e deu de cara com duas antenas, dois olhos, duas asas, e seis patas de um ser espremido entre a espuma e o tecido. Não tinha feito barulho durante toda a madrugada, estava imóvel, preso e apertado, mal podendo respirar. Era preciso libertá-lo.

Engenhosamente, a mulher dobrou o tecido para trás, e ao mesmo tempo ficou atenta para uma eventual fuga. Subitamente liberto, o animal caiu no chão e correu para debaixo da cama, mas foi surpreendido pelo chinelo que o esmagou. O inseto jazia morto, mas a sensação de invasão do travesseiro, o lugar mais íntimo do seu sono, continuou na imaginação e na sensação do contato que persistiu na sua mão. Uma mão de quem dormiu com o inimigo, um intruso encostado em seu rosto, próximo ao seu ouvido, ao seu pescoço, a sua boca, separado apenas por um tênue tecido branco, aquele que tinha sido uma lustrosa e nojenta barata.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

3 comentários:

  1. Doutora Mara,
    Valeu o texto antiofídico! Abraços.

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  2. Ótimo tema, Mara! Senti até um arrepio ao ler o final da crônica! Minha mãe já foi picada por escorpião. Disse que é uma dor horrível... Abraço!

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  3. O nojo e o medo se misturam numa situação dessas.
    Agradeço a vocês Marcelo e Sayonara pela atenção da leitura e dos comentários.

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