sexta-feira, 30 de julho de 2010




Recordação de Canhoto da Paraíba

* Por Urariano Mota

Agora, neste fim de abril, faz dois anos que Canhoto da Paraíba partiu. Recordo a última vez em que o vi.
Naquele domingo ele estava com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre esteve durante 16 horas, em seus últimos dias. Depois de um AVC, ele falava com dificuldade e baixo. Abreviava palavras, cortava sílabas. Eu havia ido à sua casa para lhe entregar os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado, enviados de presente pelo próprio Carlos Henrique. Canhoto me recebeu no terraço, como sempre. .
Naquela manhã descobri que ele estava cego de um olho e via mal no outro. Para ele era nada. Canhoto era um homem com mania de felicidade. Em lugar de remoer o sofrimento, ele possuía o prazer de sorrir, de buscar a felicidade. Sofria, é claro, percebia o sofrimento, mas isso não o levava ao desespero, nunca. Naquele domingo, carreguei comigo meia garrafa de uísque para beber enquanto ouvia os choros de Carlos Henrique Machado. Então pedi à sua filha Vitória um copo com gelo. Que fez Canhoto? Pediu um também, porque desejava me acompanhar na bebida. Eu fiquei muito feliz, ter Canhoto comigo em uma bebida a ouvir choros no bandolim... quanta esperança. Vitória, a filha, secretária, enfermeira e companheira repôs a nossa alegria no quintal da realidade.
- Ele não pode beber. Ele toma Gardenal.
Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levei o meu copo de uísque a seu nariz, para que ele, que não podia beber, sentisse o aroma do álcool com gelo no domingo. Mas Canhoto estava gripado, com as narinas cheias de vick vaporub. O frustrado, acreditem, fui eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar à paciência de viver com o que é possível. E por isso, para não afrontá-lo mais, bebi menos, somente três doses. E assim melhor pude ver e observar a sua pessoa.
Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorriu. Melhor dizendo, pôs um sorriso que não voltava a se fechar nos lábios. Como é que podia ser infeliz a ouvir aquela composição? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto era feliz porque era um homem musical. Ele retirava do som o remédio para a desgraça. Porque a sorrir ele balançava a cabeça também, a se repetir “sim” em silêncio. Então eu soube e senti que ele estava liberto. Não estava mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira era um objeto de conforto. Era como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tinha razão, como expressou Paulinho da Viola.
Então ele comentou baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admitia outra frase:
- Como tem gente boa no Brasil.
Vieram outros choros, até chegar à composição Catira. E Canhoto, esquecido do nome do artista que ouvia:
- É João Pernambuco?
É Carlos Henrique Machado, eu lhe respondi.
Senti que ele não me via, não pela ausência de visão, mas porque a ausência de luz era um elemento para a sua viagem. E ele estava mais do que certo, isso não era uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual poderia escrever. Isso é típico da arte, qualquer arte. Fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva - tudo matéria para a expressão.
Mas essas bobagens que acabo de escrever, no calor do que me vem, do que percebo agora, ele sabia sem conceito cerebral, porque sentia, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que estava de executar a beleza com as suas gordas, generosas, canhotas mãos – porque ele era todo esquerdo, agora sinto, o que nele era destro era apenas auxílio para o outro lado...
Eu vi. Canhoto passou a compor de outra maneira, enquanto acompanhava os movimentos do choro. Eu vi: Canhoto estava tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, apesar do estado em que se encontrava, ele continuava a tocar. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Apesar da mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento na tíbia, no tornozelo!!! Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas era insopitável, irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformara em braço de violão.
Então caiu uma chuva pesada, e para melhor refletir sozinho sobre aquele mundo, me desculpei:
- Canhoto, vou agora, antes que a chuva piore.
E ele, num improviso de gênio e súplica:
- Vá não. A chuva passa...
E fiquei mais um pouco, em silêncio, porque Canhoto continuava a tocar e a chuva não tinha fim.

• Escritor e jornalista

3 comentários:

  1. Linda crônica, Urariano. Que tal republicar sua Oração a Canhoto da Paraíba? É dos seus textos inesquecíveis.
    Abraços

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  2. A história me remeteu ao meu pai, à época em que ele adoeceu e ainda contactava com o mundo. Estava encantada, dentro da história, vivendo o momento, quando tive um desapontamento. Você fez e desfez o cenário, falando ter sido bobagens as suas considerações. No final a pergunta: o que de fato precisamos? Não são necessários bens materiais se posso fingir que toco, mesmo sem violão. Essas lições que você nos joga, Urariano, atingem fundo as nossas emoções. Caso você não fosse escritor, poderia bem ser psiquiatra.

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  3. Grato, Risomar. Grato, Mara.
    Gostei das observações das duas amigas.
    Abraços.

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