sábado, 17 de julho de 2010




Crônica-poema esportiva de Paulo Mendes Campos



* Por Luiz Carlos Monteiro

O jornalista e escritor mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991), dividia seu tempo entre a crônica, a poesia e a vida boêmia. Era um expert em futebol e em frases espirituosas e bem-humoradas. Ao longo de sua vida teve colunas diversas, fixas ou menos duradouras, em jornais e revistas. Nesta crônica-poema, Paulo Mendes homenageia os jogadores da seleção brasileira de 1962, que ganharam o bicampeonato mundial. Ela compõe o livro O gol é necessário: crônicas esportivas (RJ, Civilização Brasileira, 2009, org. Flávio Pinheiro) e intitula-se 13 maneiras de ver um canário. Dos treze canários que o poeta cantou, dois não eram titulares, Pelé e o homem da rua. Mas gozavam da importância dada aos demais, pela condição de fenômeno de um e pela indispensável torcida do outro. Vamos à crônica-poema:


13 MANEIRAS DE VER UM CANÁRIO

I

Gilmar, quando Deus é servido,
come um frango
psicanalítico
por partida. Depois tranquilo-tranquilo, fecha a porta do inferno.

II

Vê Djalma Santos, indo e vindo, saltando, disparando,
correndo, chutando, cabeceando, apoiando, defendendo,
corrigindo, ajudando às vezes, inexplicavelmente, até sorrindo
em seu combate.
Vê Djalma Santos e reconhece logo:
ele acredita em Deus, é um servo de deus, um lateral direito
de Deus.

III

Mauro afirma em Marden, Samuel Smile, na força da vontade,
na vontade da força, na constância do caráter, na vitória
suprema da coragem, e em todos os sentimentos de aço, que
eu, por exemplo, não li.

IV

Nilton Santos confia na bola; a bola confia em Nilton Santos;
Nilton Santos ama a bola; a bola ama Nilton Santos.
Também nesse clima de devoção mútua não pode haver problema.

V

O povo disse tudo: antes Zózimo do que mal acompanhado.

VI

Zito é mensageiro de dois mundos:
o da vida, na área adversária (onde residem os mistérios gozosos)
e o da morte, na área do coração brasileiro (onde residem os
mistérios dolorosos).
Zito ziguezagueava zunindo para o Norte.
Zito ziguezagueava zunindo para o Sul.

VII

Como o poeta limpando as lentes do verso,
como o microscopista debruçado sobre o câncer,
como o camponês a separar o joio do trigo,
como o compositor a perseguir a melodia,
o futebol de Didi é.
É lento, sofrido, difícil, inspirado, idealista.
Eis um homem que quase achou o que não existe: perfeição.

VIII

É pela cartilha da infância que se joga futebol.
Garrincha vê a ave. Garrincha voa atrás da ave.
A ave voa aonde quer.
Garrincha voa aonde quer atrás da ave.
O voo de Garrincha-ave é a chave,
a única chave.
E um bando de homens se espanta no capim.

IX

Vavá não crê, Vavá confere, Vavá vai ver.
Zagueiro faz escudo das traves da chuteira:
Vavá vai ver.
Goleiro faz maça medieva do osso do joelho:
Vavá (de Pernambuco)
vai ver.
Para o que der e vier, Vavá vai ver.

X

Há uma dramaticidade em Pelé que eu não me consinto adivinhar.
Como Cristóvão Rilke, Pelé tem um canto de amor e de morte.
Como Cristóvão Rilke, Pelé é o porta-estandarte.
Como o de Langeneau, Pelé está no coração das fileiras mas está sozinho.

XI

E eis que um jovem disse: “Quando vinha acaso um leão ou urso e levava um carneiro do meio do rebanho, eu corria após eles e os agarrava e os afogava e matava; o mesmo que fiz a eles, farei a este filisteu.” E foi assim que Davi-Amarildo liquidou Golias-Fúria com duas pedradas de sua funda.

XII

Minuto por minuto, durante 540 minutos, Zagalo cumpriu o seu dever.

XIII

Olhei por fim o XII canário
e era o brasileiro anônimo da rua, do mato, do mar,
o coração batendo, bicampeão do mundo.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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