domingo, 25 de julho de 2010




O recado partido

*Por Pablo Uchoa


Uma morena de olhos bem negros choraminga na minha secretária eletrônica:

– Tenho saudades do menino doce e de sapatos furados que se perdeu aí por dentro.

Eu escuto e não digo nada. Lembro do que me aconselhara uma cigana:

– Jamais confie em pessoas de olhos claros.

Eu retruquei: – Desculpe? – por trás de minha íris verde.

– Pessoas de olhos claros não são confiáveis – ela asseverou. E eu, atormentado, encerrei a consulta.

No bar, o garçom ofereceu:

– Uma loira gelada para o cavalheiro?

– Nunca tive sorte com as loiras – eu confessara à cigana.

Uma loira certa vez me confidenciou, “te amo e não sei se amo a ti ou ao meu amor”. E eu tentei decifrar o enigma olhando longamente através dos seus olhos amarelados – claros – até desistir daquela insanidade, aquele labirinto, meu amor adeus, sussurrei-lhe ao ouvido sonolento lá pelas quatro da manhã.

Parti-lhe o coração como quem deixa a chuva trincar uma casca de ovo, um empurrãozinho de leve na beira da falésia. Ou como aqueles “bulinhos” de maisena que se esfacelavam nos meus dedos de menino, perdoe, Senhor, abri a mão de levinho e deixei o vento carregar para longe o amorzinho grão de areia daquela mulher.

Tantas vezes.

O amor que mais se demorou na minha vida tinha cabelos negros, mas olhos azuis. E eu me entreguei para no fim dar razão à cigana, quem tem juízo não mexe com essas coisas.

– Tantas cartas – choraminga a voz na minha secretária eletrônica.

Ai morena, que desaviso. Afoiteza dispensar conselho de mãe, nunca compre bala na porta da escola nem confie em pessoas loiras e de olhos claros. Coloquei seu coração no varal e avisei que a chuva vinha, a essa hora o menino doce devorava a estrada com seus sapatos furados, olha a trouxa dele que vive pronta na soleira da porta.

Se não fosse tarde, eu te prevenia: para uns desalmados, existe certo deleite em partir levando um pouco de nostalgia. Mesmo um sabor levemente doce, como aqueles “bulinhos” de maisena que na minha infância eu comprava na beira da estrada.

Mas quando eu era menino eu me bastava, tinha partido nenhum coração e esbarrado com quase nenhuma loira. Aos poucos anos, meus cabelos eram tão brancos que nem de loiros eu podia chamá-los. E antes, muito antes, nem cabelos eu tinha, estava bem guardado na barriga da minha mãe e era apenas um inocente, porque meus olhos claros nem se haviam aberto pela primeira vez.

*Jornalista, graduado pela USP em 2000. Trabalhou, por cinco anos, na TV Globo, como produtor e editor da Globonews e do núcleo de reportagens especiais do Jornal Nacional. Mora na Inglaterra, como pesquisador do Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres.

Um comentário:

  1. É bom ler sobre o amor. Há sempre uma abordagem nova para ser feita, no caso prevaleceu a ironia.

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