quarta-feira, 28 de julho de 2010




Matéria de Jornal

* Por Mara Narciso



Mais um engano de minha parte. Nascida e criada em Montes Claros, pensava conhecer as pessoas dessa terra, mas não. O meu pai, Alcides Alves da Cruz, contava nas rodas de bar tantos casos. Sabia dos personagens da cidade através dele. Mas não ouvi falar de Haroldo Lívio de Oliveira.
Caiu em minhas mãos o livro Nelson Vianna, o Personagem (Matéria de Jornal), Edições Cuatiara, 1995. São textos publicados no Jornal de Montes Claros de 1950 a 1989. As primeiras crônicas referem-se ao personagem que se tornou folclórico e que dá nome à obra, e então outras pessoas são retratadas pelas letras certeiras de Haroldo Lívio. Encantei-me com a maneira de ele ver o mundo sertanejo, numa forma otimista e poética, deixando a nós bairristas acreditar que o sertanejo, além de forte, constrói a sua história, não se deixando abater pela distância dos grandes centros ou pela sequidão da nossa terra.
Surpreende ver acontecimentos antigos surgirem como casos presentes, feito uma reportagem que está no ar. Pessoas que ouvi falar e outras que conheci, desfilam importantes, quem sabe, maiores do que devem ter sido. Haroldo Lívio narra generosamente sobre gente que andou por essas ruas e depois deu nome a elas, além de curiosidades do interesse de quem ama essa cidade, e quer vê-la melhor.
É tão normal passar e ver um prédio, por exemplo, que não imaginamos a sua saga, como foi e quem o edificou. Haroldo Lívio conta tudo, passando do pitoresco ao histórico, dando brilho a quem merece, e com muita propriedade dá a sua visão dos fatos. Cada personagem tem a sua vez na ribalta, a sua hora de estar no centro da cena, para nossa admiração e aplauso.
O desfile é agradável de ver. Recordo de Dulce Sarmento, a compositora de músicas sacras e professora de piano; Zinho Bolão e seu famoso café; Chico Marinheiro, o eterno Papai Noel e Rei Momo; os pais do escritor que não cito o nome por que ele não os denominou; Toninho Rebello e a luta pela repetidora de TV; Dácio Cabeludo e sua palavra inventada na Câmara de Vereadores; Lazinho Pimenta e as cantorias na Boate da Praça de Esportes; José Amaro Araújo e sua loja de arreios e conselhos a Nelson Vianna; Leonel Beirão de Jesus e a sua boneca; Manuel Bandeira, pernambucano e poeta de Minas que fez poema para Márcia dos Anjos, a filha do seu amigo Cyro dos Anjos; Rubem Braga, que veio a Montes Claros, e do alto dos Morrinhos disse que aqui embaixo era um bonito lugar para se construir uma cidade. Que graça e criatividade demonstra o escritor, quando justifica a imaturidade do futuro cronista consagrado, dizendo que ele estava “apenas se empenujando”.
Acontecimentos históricos de Montes Claros trazem lágrimas, como a demolição do Mercado Municipal na Praça Dr. Carlos, ou da Boate da Praça de Esportes; ou então enchem os olhos, como a chegada da TV, e a construção do Centro Cultural. Este, segundo Haroldo Lívio, deveria se chamar Palácio da Cultura, caso o modesto escritor não fosse apenas um palpiteiro de jornal, e sim, um conselheiro do então Prefeito Municipal Toninho Rebello.
As crônicas vestem a nossa cidade com roupa de gala, e mostram que somos o que somos pela importância do passado. Fala com garbo sobre o eterno historiador Dr. Hermes de Paula, o homem, que segundo o autor, inventou o centenário de Montes Claros, que já tinha sido comemorado alguns anos antes, e trouxe um turbilhão de progresso.
Ensina-nos que a cidade de Grão Mogol, embora traga um nome que nos leva a pensar nos títulos honoríficos da China, nada mais é do que a corruptela de “Grande Amargor” (Gran Margo), um lugar de sofrimentos pela busca de riquezas. Essa parte é poesia pura, na veia de quem lê e nos veios de ouro e diamante dessa cidade tão inspiradora, quanto bela.
A literatura de Haroldo Lívio se torna ainda mais atraente quando fala de seres inanimados como se vivos fossem. Não sei se ele gostaria da comparação, mas me lembrou José Mauro de Vasconcelos em “O Meu Pé de Laranja-Lima”. A crônica de Grão Mogol é o aperitivo para se atingir o cume na parte final do livro, chamada “Soberbo”, que homenageia um Riacho que não se verga ao Rio Itacambiruçu e corre lado a lado com ele. Entrando no Google, deparo no Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros justo com essa crônica deliciosa. Wanderlino Arruda, o organizador do site, deve ser quem a escolheu. Fico feliz em ser endossada por ele, que sabe tudo de cultura, na escolha do melhor texto do livro: inesquecível.


* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

4 comentários:

  1. Amiga Mara,
    Que bom ser meio que um "voyeur" destas suas reminiscências de Montes Claros - cidade que amo mesmo não conhecendo, pelos dois mitos da MPB que gerou. Pai e filho, Beto e Godofredo. Beto, gênio da nossa geração, pilar do Clube da Esquina. E seu injustiçado pai Godofredo, autor de obras-primas de encanto raro como "Noite sem Luar", "Cantar" e "Um sonho". Praticamente um desconhecido fora de Montes Claros, que morreu pintando painéis e letreiros...
    Bem que ele merece uma crônica sua. Talvez você saiba e possa nos contar mais sobre o grande Godofredo Guedes. Que tal? Um grande abraço pra você.

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  2. Marcelo, nesse livro de Haroldo Lívio há uma crônica abordando o grande compositor e letrista que foi Godofredo Guedes, e lamenta o esquecimento da Academia Montes-clarense de Letras em convidá-lo para fazer parte da agremiação. Mesmo sendo baiano, ele passou 27 anos da sua vida em Montes Claros. Aqui na cidade ele é muito reverenciado como pintor e músico, mas pouco elogiado como poeta. Há o poema de "Casinha de palha" que é muito gostoso também.
    Obrigada pelo comentário.

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  3. Obrigada pela leitura e comentário Renato. Quanto a beleza de Montes Claros, estamos empurrando a pobreza devagar e melhorando a estética da nossa esforçada cidade.

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