segunda-feira, 19 de julho de 2010




Eu choro, tu choras, eles choram

* Por Eduardo Murta

A cena carregava um quê de surrealismo. Um telegrama de que pouco se decifrava. E um ritual quase solene para que chegasse às mãos de Acácio. Carteiro que parecia de encomenda: quepe lustrado, luvas impecavelmente brancas, ar formal. Estranhou. Jamais vira um assim. Mas era real. Fora alcançado já fora do escritório, rumo ao elevador. Tão incomum, que deslizou pelos 23 andares se perguntando de que palco saíra aquele personagem.

Tomou o táxi em direção a casa e foi, mansamente, desdobrando as extremidades do envelope. Metódico. Soava natural, até que o corpo experimentou um leve tremor, assim, por um nada. Sentiu uma palpitação branda, intermitente. E a imagem de vendaval lhe visitou, incômoda. Diante da náusea, se agarrou à folha da mensagem, feito fosse um porto salvador. Trouxe junto à face.

As letras num bailado bêbado, foi encaixando a vista a que decifrasse. Estava lá, sem rodeios: “Te esperamos para o enterro”. Seguia uma assinatura abaixo, com o nome da família. Olhou à volta, a conferir se não delirava. Certo que não: os carros mantinham distância regulamentar, havia populares nas esquinas, pipoqueiros. E o suor lhe brotava aos borbotões. Gelado, mas brotava.

Desembarcou sem esperar troco e juntou um conjunto de roupas na pequena mala. Se certificou da presença dos óculos escuros – não queria que o vissem chorando –, do terno negro, fundamental para a cerimônia. E do lenço, indispensável. Estava seguro de que desabaria em prantos, fosse Vô Nicácio, Vó Jupira. Se recusou a pensar na figura dos pais e nos irmãos mais novos. Rumou à rodoviária.

Inútil ligar aos parentes. Sequer eletricidade havia em Beiral das Carrancas. E o posto telefônico mais próximo empregava mensageiros em lombo de jegue. Por tradição, escolheu um banco contrário à posição do motorista, poltrona dando para o corredor, exatamente no meio do ônibus. Conhecia as estatísticas e confiava que, ali, as chances de morte seriam menores num caso de acidente.

Chegou com o fim de tarde se misturando aos primeiros vestígios da noite. Do morro avistou o casario abaixo. As luzinhas dando vida à rua central, à pequena praça. As pessoas eram um balé de sombras disformes e sem pressa, ao longe. A serenidade lhe surpreendia. Resolveu adentrar o lugar, também em aproximação cadenciada. Os cheiros foram lhe invadindo e, com eles, uma sensação generosa de saudade.

Tocou árvores, paredes, a esquina do curral. Parou diante do armazém de Seu Venâncio. Como envelhecera. Lá se iam quase 30 anos sem que o revisse. Sorriu, se aproximou do balcão, pediu um café. E, estranho, foi solenemente ignorado. Bradou que era Acácio, filho de Zezé e Marieta. Em vão. Se retirou, incompreendido, e, mágoa se avizinhando, acelerou os passos. Refúgio mais acolhedor que casa de pai e mãe jamais conhecera nas andanças pelo mundo.

Beirando o portão, ouviu o choro. Bateu-lhe uma dor repentina. Medo de entrar. Dar com alguém tão querido e nada poder fazer. Como desejava era amparar, não pretendia chegar assim, pedindo amparo. Retrocedeu. Buscou uma fresta da janela, sem se denunciar. Rezou por coragem. Avistou o caixão, o corpo lá dentro. Começou pelos pés. Sapatos novos. Um terno comum, tons negros.

As mãos, sim familiares. Fixou-se nos detalhes. O desenho das veias, a curvatura dos dedos. Ai, o anel!!!! Por Deus!!! Uma ânsia de afogado tomou-lhe o coração, súbito. Como a alma lhe saísse pelos poros. Veio um vento brando. Depois, a plenitude. Foi se afastando, leve, até ver que aquela gente, aquela gente chorava por ele.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. Que conto incrível, Murta. Você guardou bem o desfecho. Perfeito. Parabéns!
    Abraços

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  2. Morrer e não perceber, até ver o próprio cadáver no caixão. Uma literatura gostosa de ler, suave, delicada como deveria ser a morte. Até mesmo a própria morte.
    Destaco:
    "Os cheiros foram lhe invadindo e, com eles, uma sensação generosa de saudade."
    Essa frase me presenteou com muita saudade. E que a morte seja tão doce quanto a sua descrição perfeita, Eduardo.

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