sexta-feira, 23 de julho de 2010




Três corações



* Por Urariano Mota

Daquele encontro na biblioteca seria precipitado dizer que nascera uma amizade. As relações não se fazem como nos filmes, onde as amizades se anunciam, “você será meu amigo”, e brotam e se desenvolvem ao correr da fita. O que nascera ali foi uma curiosidade mútua, misturada a uma discreta rivalidade. Como era possível rivalizarem-se indivíduos que possuíam quase nada, e no quase nada que possuíam davam motivo a serem marginalizados? Seria bom, justo, razoável, que desse modo não se conhecessem. No entanto, assim foi.
Este sentimento confuso, de atração, afinidade e disputa, caíra em suas almas, mas nelas não encontrou um terreno informe, vazio, de trevas cobrindo a face do abismo. Num papel escrito pouco tempo depois da provação na empresa de lista telefônica, João rascunhou que se sentia um ser à margem. De passagem, anotemos nós, que próximo da idade de 20 anos ele ainda não se sentia um homem. Ele se descrevia como um ser. E com isso ele queria expressar, em palavras escritas, que ele era um indivíduo que pensa, sente, e sofre. Em palavras não escritas, como um iceberg cuja base não aflorava ao papel, ele queria dizer que um homem era um indivíduo integrado ao mundo grosseiro, brutal, de assalto aos víveres, e que se satisfaz na sua porqueira. Um indivíduo, em suma, que tinha cinto grosso nas calças compridas e espancava. Suas próprias calças ele as sentia curtas, ainda que transformadas. As calças compridas que vestia eram como um adereço para a estética, para a elegância, como um menino que as veste para tomar ares de gente grande. Elas não eram a sua segunda pele, que substituíra a primeira. Eram estas suas palavras, numa identificação que chega a parecer um arremedo de Cruz e Souza, no poema Só:
"À MARGEM. Muito embora as estrelas do alto me chamem, eu não tenho olhos para ver as estrelas. Tenho a vista na altura da cabeça, e ela vê as pessoas que passam. São estranhas, nada me dizem, eu também sou um estranho, nada represento para elas. Fico sentado na rua da Aurora, e o rio passa. Em suas águas à noite se refletem estrelas, mas eu não as vejo. Nas águas que correm eu me vejo. Eu estou só, eu sei que estou só, eu sei muito bem que me empurram para a margem. Por que Deus não socorre os seus desvalidos? Por que o amor de que sou capaz não me abraça? Passam mulheres, passam mocinhas, belas, perfumadas, vão à festa, às compras, ao trabalho. Elas não me vêem. Sou abaixo de um estranho para elas. Sou a brasa do cigarro que fumo, a fumaça que se vai, o chorinho no bandolim de Jacó. O que isto representa para elas? O rio é uma canção baixinha demais para seus ouvidos. A muda sensibilidade não se comunica a elas. Sou filósofo, amo a poesia, futuro e potencial arquiteto. O que isto representa para elas? Para as mocinhas mais vale o dinheiro que paga o sorvete, o cinema, uma boa conversa. O dinheiro que lhes paga o futuro de uma boa casa, carro, luxo, e uma idiotia completa. Isto eu não lhes posso dar. Estou só. Passam. Sou empurrado cada vez mais para a margem”.
Ele ia escrever “me empurram cada vez mais para o abismo”. Mas, para forçar a coerência com o título, escreveu ‘margem’, enquanto uma vozinha secreta ressoava insistente, ‘abismo’. Coerência de fecho com o título, um primarismo, aparente. Na verdade, como dizer?, essa “coerência” era um recurso previdente. Pois a margem era a margem que ele guardava para a sobrevivência. Já nessa composição se revelava o precário equilíbrio entre não aceitar o mundo e ao mesmo tempo não cair no declive do suicídio. Um caminhar na estreita faixa de ridículo e sublime onde tropeça um indivíduo sozinho. Só, ainda que a natureza física o chame para tragá-lo, abraçá-lo, e dissolvê-lo. Uma natureza física solidária, oposta ao egoísmo frio da natureza humana. Mas como era necessária uma solidariedade humana, que, aparentemente, ele desprezava, e como a solidariedade do mundo físico era avara! “Como eu sinto compungidamente, por entre tanto horror indiferente, um frio sepulcral de desamparo”
A beleza expressa nessa dor chegava a João pela dor que ele próprio sentia. No entanto, nessa época ele era visto como um rapaz metido a sabido, que aprendia idéias mais rápido que os outros, e disso não fazia segredo. Numa palavra, reduziam-no a um chato. É que a dor secreta, que remói e move a gente, não se agarra à face e aos gestos. O que é íntimo não sobe à tona, para que se inscreva numa toalha de Verônica. Se assim fosse, a arte seria inútil, parodiamos.
Esse chato Carlos percebia. Notava-o no que João possuía de abusado, de inconveniente. Mas, fosse pelo golpe de rejeição no emprego que ambos sofreram, fosse pela qualidade das discussões travadas na fila, Carlos amenizou o incômodo de suas provocações. E o que não era de menor importância, Carlos sentiu por ele uma aproximação por um lado escuro. Essa atração escura não era o que se convencionou chamar de sexto sentido, ou intuição, ou algo que se aposse da verdade antes mesmo que a verdade apresente a sua face. Era uma base comum, que lhe gerava simpatia, submersa. O que era precisamente isto? Uma inadaptação assemelhada? Uma angústia percebida nas íris negras agitadas, que não paravam em nenhum ponto que focavam? Ora, bem diferente do que prega uma falsa superioridade, aflitos não se amam pela base comum de aflição, leprosos não gostam de leprosos. Nós gostamos no outro daquelas melhores qualidades que desconfiamos que residem também em nós. Assim como se diz que por vezes odiamos num homem os nossos próprios defeitos, podemos dizer que amamos num próximo as nossas próprias esperanças.
Carlos desconfiava em João uma sensibilidade quase frágil. E dizemos frágil por usar palavras com pudor, para não quebrar o seu cristal líquido. Deveríamos dizer, se não existisse o receio de quebrar essa delicadeza, que Carlos desconfiava em João uma sensibilidade feminina. E isao, para ele, não era um pecado, era um ganho, um valor raro de pedra entre algas, moluscos, uma concreção fosca de pérola. Uma sensibilidade - uma fina e sutil -, e feminina - mãos de ourives que estranham o áspero e peso de um machado. E como se estivesse diante de um espelho, como num sonho em que nossa imagem se veste do corpo de um terceiro, Carlos construiria, recordando pontos que nele mesmo já estavam dados: em vez da massa, do conjunto da floresta vista de cima, a visão de uma folha em sua haste e nervura; em vez da análise, e da síntese, a retenção no micro que pouco se dá com o orgânico, que não é parte do orgânico, mas o micro que é ele mesmo única e exclusiva realidade, o mergulho sensível num mundo absolutamente à parte. Seria como a utopia de uma abstração zen, limpando o cérebro de todos escolhos, um ponto, o ponto, só o ponto, mais nada, como se rumo a esse ponto partíssemos na descoberta ausente de toda e qualquer história prévia.
Quando os conheceu, Carlos começava o que para seus familiares era uma “briga com os ventos”. Traduzindo, ele estava numa briga contra a razão. E isto significava que filho de ex-proprietário de terras, difícil para ele era a convivência no lar com despossuídos que também perderam a honra. A isto a sua razão rejeitava. E num movimento de serpente que se volta sobre si mesma, a razão que rejeitava o mundo rejeitava-se, para não ver a razão, dura e dolorosa, dos fantasmas que eram a sua gente. O seu apego à música era um afago na ferida, mas não anulava o cenário de fundo, que persistia. A música era um perfume jogado na podridão e desarranjo domésticos. Tornava-os apenas mais suportáveis. Mas deixava inelutável a presença dos seus, por vezes em aberto conflito, minando-lhe as forças, propagando-se em ondas de neurose que o atingiam, por mais que se resguardasse. A isso havia portanto que resistir, à sua maneira. “Brigar com os ventos”, no dizer dos que lhe eram próximos.
Sobre essa briga, uma palavra. As pessoas do povo têm um curioso conceito do que vem a ser a razão ‘prática’. A razão prática vira ‘a prática’. E isto é consertar um telhado, levantar uma casa, corrigir um relógio, fazer andar um carro. A razão, que tomam como a inteligência, é aquela que produz esses resultados. Tal conceito seria cômico, se não produzisse as mais funestas conseqüências, práticas. Quando os tios e irmãos mais velhos de Carlos sorriam à sua briga contra o que para eles era invisível, estavam a léguas de saber que esse ar de mofa geraria suas próprias ruínas. Sorrir de Carlos era mais que um risonho não dar importância, mais que um não levá-lo a sério. Era uma negligência ao que poderia ser e já era humano, sem que se tocasse. Do sorriso ao deboche, à galhofa, ao insulto que Carlos, superiormente, não ouvia, era menos que um passo - era uma passagem natural, um transporte. Por que não se disse tudo sobre o deboche? Por que os melhores discursos, os mais bem intencionados, fazem uma magoada defesa da vítima? Esquece-se, quase sempre, que o deboche volta-se contra o autor da zombaria, como um bumerangue. A anulação que se pretende fazer ao ridicularizado já é, ela própria, uma anulação de tutanos íntegros do zombador. E as conseqüências disto não são uma risonha piada. Ora o sublime, dizem, façamos de tudo uma chalaça. Mas o sublime existe, não sabem, felizmente o sublime existe, como um projeto de auto-preservação para os anos onde não sobreviverá a piada. Quando os seus parentes diziam-lhe, “pára de chocar os ovos aí deitado”, não imaginavam que aí começava a ser chocada a pulverização deles em dias vindouros.
Num papel nascido nos dias em que ele chocava, Carlos assentou, fazendo um esforço para não dar às suas palavras uma feição autobiográfica:
"SONHANDO. Meu xará foi ser gauche, mas é artista. Eu quereria ser artista, mas me tomam por gauche. Sonhar é isto, rapaz: hoje te maltratam e mal sentes. O gosto amargo que porventura te reste na boca, o salgado nos lábios do soco que nem viste, são tela escura entre uma cena e outra do filme que importa. Vês este filme em preto e branco. Não sabes se o enredo é de riso ou de choro. Talvez um de riso e lágrimas, numa comédia de Chaplin, te caísse bem. O certo é que vês homens de chapéu no que seria um figurino de faroeste, mas que faroeste não é. A sala está escura, do teu lado há gente que não distingues, porque a luz da sala ilumina somente o teu rosto. Serás artista nesse filme que passa. O papel é bom porque não te darás a função da mocinha que torce o pé na perseguição dos bandidos. Esses malfeitores te querem, te azucrinam, te infernizam. Eles são o inferno absurdo, só maldade. És fugitivo sem crime, réu sem julgamento, herói sem rumo, mesmo assim te preparam a forca. Ao que parece, este é o sentido da fita. Uma forca, como desfecho prévio. Serás salvo, Carlos? Dás as costas à forca. Os bandidos pulam, jogam os chapéus para o alto, gritam e protestam: “isso é impossível”. O teu corpo pendurado era a graça da brincadeira. Jogas a poeira do corpo e já estás num deserto, ventos levantam a areia, batem no teu turbante. Caminhas, de costas para a tela, sozinho. Estás melhor assim. Ninguém vê se tens lágrimas ou rosto de pedra. Que sabor extraordinário sentes na caminhada nesse deserto. A tua falta de tudo é bem melhor nesse branco cenário. O deserto te enriquece de tudo que não tens. Caminhas. Se não estás feliz pelo menos deixaste de ser infeliz. Entre sol e areia este deserto cai do céu. Continuas caminhando, cada vez mais distante da câmera, até o ponto em que não haja mais ponto, só a areia branca. Estranhamente na tela não aparecem as três letras do fim.”
Ele anotaria mais tarde, num post scriptum: “meu amor platônico é do tamanho deste deserto.” Mas não quando escreveu as linhas acima, porque a própria palavra amor estava proibida. Ainda que recebesse adjetivos, platônico, impossível, utópico, improvável ou difícil, a palavra amor ainda não era para ser escrita. Era uma proibição que ninguém dizia, e nem precisava, porque a realidade a que ela remetia já estava com o acesso fechado. Seria como dizer-se, montarei na rena para desembarcar em Marte. Não, ainda não é isso. Era uma interdição palpável, menos fantasiosa. Seria como preparar-se para um baile de valsa, quando à noite se tem apenas um violão. Isso está mais próximo, mas ainda não é. Então deixemos as comparações que dispersam o significado, para chegar mais claro: o amor era o direito de uma outra casta. Aos párias, aos carentes de tudo, ele estava interditado. Para estes não havia nem uma porta avisando para a desesperança do inferno. O amor era um reino sem vias nem anúncio.
Mas não ter acesso ao reino não é a mesma coisa que dele não ter necessidade. É natural que se procure alcançá-lo, ainda que se bata em portas estranhas, estrangeiras. Para Samuel o amor tinha a elasticidade e o aspecto volátil do mercúrio num termômetro: descia e subia de acordo com a temperatura, do seu cérebro. Mas, digamos, o seu cérebro tinha uma escala invertida. Nos pontos mais altos de calor, de urgência acumulada, descia para os pontos mais baixos de animalidade: o seu amor era uma vulva peluda, oculta em tufos. Pêlos negros, ruivos, brilhantes ou baços, que importava?, moitas sobre o líquido ardente. Nessas ocasiões sentia-se um sátiro atormentado num campo vazio. Se Deus fosse misericordioso, nesses momentos ter-lhe-ia administrado o que sua ânsia clamava, para que Samuel compreendesse que sua satiríase era mais ambiciosa. Então a vulva que pairava nas nuvens ganharia corpo, e rosto, e forma de gente. Mas não, a misericórdia não se estende aos danados. O jovem Samuel estrepava-se numa vulva só generalidade. Estrepava-se mentalmente, deve-se dizer. A sua ética, os princípios políticos que abraçara, não permitia que descesse até o puteiro. Não permitia, o que não quer dizer que resolvesse o seu desejo, devolvendo-lhe a paz.
Em outros momentos, e isto é o que mais interessa, porque nessa altura o seu destino cruza com os de João e Carlos, o ânimo de Samuel atingia a depressão franca. Em momentos assim o seu desejo se espiritualizava a ponto de a mulher seccionar-se, dizendo melhor, abstraía-se num anjo de véus cobrindo o regaço de porcelana, mulher ausente de cores de fêmea e tufos de vegetalidade. O pintor Zé do Carmo, que dá a seus anjos tanta humanidade, ficaria pasmo com essa abstração de asas, sem sexo, de Samuel. Se essa mulher é impossível de ser realizada, impossível não é a razão que a idealizava. É que Samuel, apesar do esperneio de sua vontade, nesses anos era arrastado para situações que beiravam o escatológico.
Todos os dias Samuel descia a ladeira, com as melhores roupas compradas por sua mãe. Ele então vestia o uniforme de um jovem entusiasta de vendas, de um empertigado e elegante vendedor, de quê, não dizia. Ao descer a ladeira fechava atrás de si a paisagem de amontoado de casas e casebres, de barrancos, onde morava. Descia para a Avenida Beberibe e se punha a esperar o ônibus que o deixasse no centro do Recife, de onde tomaria outro rumo, qual, jamais soube. Levava documentos comerciais na pasta, papéis com a logomarca da firma, da qual seria vendedor, se conseguisse alguma alma compassiva. De manhã ele ainda não estava suado, nem coberto de poeira e cansaço, que só viriam no correr das horas de caminhadas inglórias. De manhã, ao fim da ladeira, residia a hora do seu estado de graça. Estava plástico e receptivo, de mente aberta para o que fosse belo.
Foi numa manhã assim que Samuel descobriu uma moça bonita, de gestos e feições frágeis, que lhe pareceu sorrir. Ele não sabia o que fazer ante semelhante personagem, mas reagiu com o que mandavam os costumes, isto é, pôs-se a fazer-lhe o que parecia a ele uma corte, uma paquera. Um namoro gentil, que se adivinhava por intenções, que a ninguém deveriam se mostrar descobertas. Naturalmente, a moça bela possuía um traseiro ainda mais belo, carnoso e polpudo, em duas semi-esferas de maçãs, mas isso não era importante. Os seios nada tinham de especial, ele não os notou, o que quer dizer, não eram fartos, mas percebeu-os, ou imaginou-os rijos, pontudos, sob a blusa de meia, pois essa foi a primeira impressão que lhe ficou, mas isso também não era importante. Ela usava um doce perfume, penetrante, que lhe chegou quando mais dela se fez próximo, a pretexto de melhor divisar um ônibus. Isto, ele se assegurava, isto também não lhe era importante. Com a moça não trocou uma só palavra - que voz ela possuía, que palavras ela falava, que cabeça, que mente enunciava palavras? Isso seria desejável que ele soubesse, desejável, mas como um acréscimo, portanto quase nada importante. Pernas, coxas, ela as possuía, evidentemente, mas em calças jeans, folgadas, elas não se revelavam - isso tampouco era importante. O seu rosto era bonito, claro, ou ele não a teria notado, mas isso não era o fundamental do aceno que lhe abrira o coração. Importava-lhe mais a graça, que emanava, daquele ... anjo?, quase ele ousou dizer. A ousadia era dizer, porque no pensamento ele a via dessa maneira, tanto que nas manhãs de segunda a sexta ele tocava na sua aura, concebendo-lhe asas da maciez de sua pele. Asas viscosas, já se vê, tépidas, que grudam a gente, mas esse calor visco de irresistível atração, pelo que tinha de assombrosamente carnal dever-se-ia desestimular.
Samuel amou essa moça um mês, e esse amor foi um encanto, um deleite de olhos fechados. O ar do bairro de Porto da Madeira era bom. Na avenida ele era igual à moça, no ponto do ônibus ele chegava antes, ela não o via descer a ladeira. Mas ele a viu bater o portão, saindo de uma casa de desenho e construção do começo do século. Ele a viu em sombras, pois ajustava aos olhos um par de óculos escuros, presente da mãe. Samuel não sabia, mas magríssimo como era, em camisa de seda barata, de óculos escuros parecia sair à rua em busca de caridade pública, como um ceguinho. Apoiado na pasta como quem se apóia numa bengala, e com topete seguro à brilhantina, este não era o seu melhor postal. Mas ele a amava, acreditava-se compreendido, e isso era o que importava. Até o dia em que o sentimento foi ao chão com o impacto insofismável de um choque, externo, real.
Foi no dia em que Samuel adentrou um escritório. No balcão apresentou-se como vendedor. Precisa mais ser dito? Quando abriu os olhos estava diante de sua namorada do ponto do ônibus.
- Pois não, o que você vende? - ela lhe perguntou .
- Eu estou oferecendo produtos .... - ele tentou responder.
- Sim, que produtos? por favor.
- A senhorita poderia chamar o chefe?
- Você pode dizer. Sou eu que atendo.
- Nós estamos oferecendo produtos de qualidade, com um preço bom ...
- Que produtos são estes, você pode dizer?
- Sim, nós oferecemos produtos de limpeza, em geral... Eu sou representante da Oliveira Irmãos SA.... temos o melhor tipo de papel higiênico.
Saiu à rua quase gritando-se: “era só o que faltava, vendedor de papel higiênico!” Acabava de perder de vista o seu anjo puro.
Foi então que a necessidade de amor em Samuel evoluiu para o ideal da mulher guerreira. Os abalos da realidade não o levavam à realidade mesma. Tinham apenas o condão de levá-lo para mais longe.
Ele se dizia, nas quedas: “diabo de mulher mais fresca!” E era como se aquelas que ele mal conhecera não fossem representativas do mundo mesmo. A crise de desespero que avançava sobre João, que João interpretava como uma etapa superior de cinismo, de desencanto, as brigas com o vento de Carlos, que ele tomaria como início de uma vida enriquecida na solidão, uma iluminada ética, tinham semelhança em Samuel nos abalos recebidos como resposta a suas ações. Já foi dito que ele concretizava metáforas. Resta esclarecer que isto se dava porque ele agia, ações rápidas, impulsivas, rasteiras, que de qualquer forma levavam a vantagem de não se ficarem guardando no reino das possibilidades jamais efetivadas. Ele avançava a mão sobre a sua quimera. Ela o mordia. Em lugar daquela que o mordera ele punha outra quimera. Agora mesmo, se lesse estas linhas, e reagisse com o seu espírito daqueles anos, ele perguntaria: - “De que é feita essa quimera? Dê-me as suas características. Se forem boas, eu vou buscá-la”. Se ele fosse inventor, ele seria o inventor dos 999 fracassos, guardando-se no sonho para o acerto na milésima tentativa. Como inventor, João ficaria decepcionado com a primeira tentativa que não fosse um sucesso. Carlos, ainda que tentasse o invento, perguntaria se tamanho esforço não era afinal em vão.
Cada um à sua maneira rejeitava o mundo.

(Do romance Os Corações Futuristas, Editora Bagaço, 2000)

• Escritor e jornalista

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