sábado, 24 de julho de 2010


Um livro um tanto escandaloso


* Por Luiz Carlos Monteiro

O livro autobiográfico de Joaquim Nabuco, Minha formação, resultou principalmente das circunstâncias do isolamento político a que ele foi submetido após a queda do Império em 1889, pelo fato de ser um dos mais empenhados e intransigentes defensores do regime monárquico. Nabuco ficou sem espaço político efetivo para a sua atuação parlamentar, no auge de uma carreira que se inicia em 1878, quando é eleito deputado por Pernambuco, imediatamente após a morte do pai, o senador Nabuco de Araújo.

Tal eleição deveu-se a um acordo anterior entre seu pai e o barão de Vila Bela, chefe político de Pernambuco, no qual o senador Nabuco deixou averbada a indicação do filho para deputado pelo partido liberal. Em 1879, Joaquim Nabuco assume a sua cadeira na Câmara, e começa também os trabalhos da campanha abolicionista, que teria como desfecho o 13 de maio de 1888. Durante mais de uma década, essa legislatura é interrompida apenas no período 1881-83, devido a divergências entre ele e o partido liberal. Esta interrupção viria a ter consequências positivas, uma vez que foi no exílio em Londres que Nabuco escreveu O abolicionismo, livro claramente destinado à propaganda e agitação em favor da libertação dos escravos, e guardadas certas diferenças e proporções, correspondente em prosa aos poemas escravistas de Castro Alves. A grande diferença entre ambos é que a visão de Nabuco voltava-se mais para o combate ao que existia de negativo e desabonador na escravidão, no referente a aspectos históricos, sociais e econômicos, enquanto que Castro Alves era portador de uma visão poética romântica e sentimentalista, ainda que libertadora.

Na sua fase de recolhimento, Nabuco escreve, além de Minha formação, a biografia do senador Nabuco de Araújo, Um estadista do Império, e outras obras de reconhecido valor histórico, a exemplo de Balmaceda, sobre a Revolução Chilena. É desse tempo também a sua participação na fundação da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis, amigo de toda a vida.

Quando foi publicado em 1900, Minha formação certamente gerou protestos e causou estranheza, como já alertou Gilberto Freyre: “Para o Brasil da época em que apareceu, Minha formação foi um livro um tanto escandaloso, por ter sido, para muitos, cheio de louvor em boca própria. Não faltou quem acusasse o autor de deselegante e narciso”.

A elite bem-pensante brasileira, da qual obviamente Joaquim Nabuco fazia parte, sendo inteiramente desfavorável à prática de confissões públicas, não poderia admitir que uma figura do porte dele passasse a revelar, sem pudores, hipocrisias ou falseamentos, a sua experiência de vida pessoal. E isto, mesmo que o memorialista jamais se excedesse ou avançasse nas declarações de vivências íntimas e particulares, decerto comprometedoras de imagens ou comportamentos de conveniência burguesa. Ou que ele pouco envolvesse nos seus relatos a gente conhecida da época, a não ser numa escala funcional que quase sempre secundarizava os circundantes, predominado aí tanto o esteio de uma vaidade considerável, como o equilíbrio sóbrio de sua educação e origem eminentemente aristocráticas.

O produto histórico-literário final de Minha formação envolve, entre outras coisas, a narração calcada numa prosa de rara fruição e reconhecida beleza poética de sua infância no Engenho Massangana; a educação primeira com o barão de Tautphoeus, as passagens pelo Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e pelas faculdades de Direito de São Paulo inicialmente, e depois a conclusão do curso no Recife; o processo de gestação seguida da afirmação de posicionamentos políticos liberais e monárquicos; a descrição de viagens que fez ao exterior em épocas distintas de sua vida, notadamente à Europa e à América; a listagem exaustiva dos autores que mais o influenciaram literária, política e filosoficamente.

Ele desvela ainda a sua transitação mundana e tendências aristocráticas, que passariam a conviver, de modo um tanto contraditório, com os mais altos ideais de emancipação dos escravos. Os seus laços burgueses de liberal fiel ao Imperador e à monarquia parlamentarista foram adquiridos por absoluta influência do pai, e logo após consolidados no conhecimento da Constituição inglesas, de Bagehot, autor hoje obsoleto e que ninguém mais lê, e também no seu desempenho como adido de legação em contato direto – e deslumbrado, como ele mesmo deixa entrever – com a nobreza da Inglaterra.

O memorialismo de Joaquim Nabuco torna-se em certos instantes denso, espectral e obscuro, pelas numerosas teorizações políticas e referências a acontecimentos históricos que empreende, pelas datações e assuntos não raro repetidos, como se ele tivesse feito, e na realidade em certa medida o fez, uma montagem aleatória de vários escritos dispersos e que guardassem pouca relação entre si.

Por outro lado, estas disposições, inovações e inversões, pouco usuais em fins do século XIX, podem ajudar a revelar a sua originalidade na concepção estrutural do livro, que não se inicia propriamente pelos anos da infância, não havendo, portanto, a rigor, uma sequência cronológica e linear definida. O capítulo da infância, “Massangana”, será apresentado como o capítulo 20 de Minha formação.

O que o motivou para esse procedimento, certamente terá sido a oportunidade e a relevância do assunto em detrimento da sequência pura e simples do tempo. De todo modo, mesmo com esta independência do fator temporal, ao fim certos capítulos se entrelaçam e se interpenetram, ganham agilidade narrativa, se lidos com a necessária atenção, embora arrastem-se os capítulos em que ele passa a enumerar as suas influências européias, o que não acontece com os que referem-se aos Estados Unidos.

Em Minha formação, o elemento político alterna-se, em períodos diversos, com as inclinações literárias e artísticas do autor. No capítulo “Crise poética”, o depoimento acerca da sua condição de poeta malogrado, consciente de suas limitações para este ofício, é de uma sinceridade gritante. É sintomático o fato de ele eleger Camões como poeta de sua preferência, estendendo-se esta admiração desde a adolescência à maturidade, e tendo continuidade nos seus tempos de embaixador nos Estados Unidos, com vários discursos pronunciados sobre o poeta.

No capítulo final, “Os últimos dez anos”, não há como deixar de identificar a sua impaciência em prosseguir nesse memorialismo, que o faz estabelecer como ponto de chegada das suas vivências, bem mais públicas que privadas, a idade de cinquenta anos, demarcando assim, de modo bastante sugestivo, o que já se encontrava definido e realizado em sua intensa atuação política. A sua ação libertadora chega até a vitória da causa abolicionista, que permitiu, sem que talvez ele próprio fizesse idéia do que estava por vir, a derrubada do Império e motivou, na mesma sucessão de acontecimentos, o advento da República.

(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIII, jul. 1999.)

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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