sábado, 31 de julho de 2010




Cartas da Califórnia

* Por Paulinho Assunção


OS PRENÚNCIOS


O Homem-Segunda-Feira passou hoje com a Mulher-Domingo pela avenida Kansas. O homem ia bitter; a mulher ia sweet.

Acompanhei-os por duas ou três quadras, de longe. O homem parece que tinha encontro marcado com o presidente dos Estados Unidos da América. A mulher, bem, a mulher estava muito poetizável.

Louçã, assim do modo como só um mineiro carregado de barroco poderia vê-la.

O homem, imperial; a mulher, uma housewife sobre doze centímetros de salto, saída de um banho de sais.

Ah, tem horas que os meus olhos só captam prenúncios: o Homem-Segunda-Feira, como se invocasse catástrofes; a Mulher-Domingo, pronta para ser levada pelos anjos.

O que posso fazer se a Califórnia muitas vezes é o próprio estado das bestitudes?


AS PALAVRAS-FRUITAS


Minha avó, aos 14 anos, deixou a cidade goiana de Anápolis sobre o silhão de um cavalo e viajou um mês e meio para se casar com o meu avô, na Guarda dos Ferreiros, em Minas Gerais.

Ela chorava e chorava.

Meu avô era homem rude, comandante de tropas, tenho dele uma fotografia desbotada. Morreu aos 40 e poucos quando vinha da roça com um alforje cheio de feijão colhido de véspera.

Minha avó hoje tem cem anos.

Não fala nem reconhece mais ninguém. Só chora. Ela sempre teve lágrimas muito fáceis, as chamadas lágrimas torrenciais.

Com ela eu aprendi certos arcaísmos da língua portuguesa. Por exemplo, a palavra "fruita", palavra toda amaciada por este "i" incrustado na sua polpa.

Hoje de madrugada, quando esperei por uma trovoada distante que sacudisse esses céus da Califórnia, uma trovoada como aquelas que anunciam no Alto Paranaíba as primeiras chuvas de outubro, aquelas chuvas de banda, aquelas chuvas-lavadeiras, pois foi nesta madrugada que pensei nas palavras como fruitas, essas palavras da língua portuguesa que nos enchem a boca como as repentinas cheias de um rio.


(Do livro inédito Cartas da Califórnia)

* Poeta, ficcionista e jornalista com mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais e repórter na sucursal mineira da Agência Estado. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1983 (Poesia) e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa), categoria contos, em 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário