sábado, 31 de julho de 2010




Crítico literário e de arte



* Por Luiz Carlos Monteiro

Gilberto Freyre assina, além da obra sociológica e antropológica que o consagrou, um tipo de produção literária infrequente e de não tão grande ocorrência em seus escritos, e assim de certo modo pouco conhecida do público leitor, intelectual ou não, que o vem acompanhando.

Essa produção literária – diferentemente de seus livros de reconhecida importância como Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959) – refere-se à crítica praticada por ele, que se efetiva tanto no plano artístico-cultural quanto no literário propriamente.

Em 1962, através do então jovem crítico Renato Carneiro Campos, tais textos críticos foram reunidos e organizados numa publicação a que se intitulou Vida, forma e cor, editada pela José Olympio, no Rio de Janeiro. A segunda edição de Vida, forma e cor, a cargo da Editora Record, também no Rio de Janeiro, só sairia vinte e cinco anos depois, em 1987, ano da morte de Gilberto Freyre, mas, a julgar pela ficha catalográfica do livro, com este ainda vivo. Nesta nova edição foram suprimidos sete textos, “Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil”, “Nota sobre Augusto dos Anjos”, “Euclydes da Cunha: sua interpretação do Brasil”, “Euclydes da Cunha, tropicalista”, “Introdução do autor ao livro Região e tradição”, “Temas estrangeiros” e “De um Diário de viagem pelas terras europeias de Portugal”, e acrescentado um, “Ciência do homem e museologia: sugestões em torno do Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco”

Foram mantidos na íntegra os dois prefácios constantes na primeira edição, do autor e de Renato Carneiro Campos, onde no de Freyre há a indicação do percurso de alguns destes ensaios e artigos, apesar das supressões e do acréscimo referidos: “São trabalhos de épocas diversas. O ensaio sobre Augusto dos Anjos foi escrito em inglês e em Oxford; e apareceu numa revista literária de Boston em ano remotíssimo: 1924. As notas sobre pintura no Nordeste são de 1925. O ensaio acerca de Amy Lowell inclui trechos de um trabalho, também escrito em inglês, aparecido num jornal dos Estados Unidos, quando o autor era ainda estudante da Universidade de Baylor. Vários dos outros ensaios são de todo inéditos. Alguns, porém, são retirados de trabalhos já publicados: Aventura e rotina e A propósito de frades, principalmente. A nota sobre Joyce apareceu primeiro em jornal, depois em Artigos de jornal – livro esgotado há anos. São também incluídos o prefácio a outro livro, há anos esgotado, Região e tradição, o prefácio a O romance brasileiro, de Olívio Montenegro, o prefácio aos Ensaios de crítica de poesia, de Otávio Freitas Júnior, o prefácio aos Poemas negros, de Jorge de Lima, o prefácio ao ensaio de Temístocles Linhares sobre o romance moderno.

Um dos primeiros autores brasileiros a atentar para a presença de Freyre como crítico foi o decano da crítica paulistana Antonio Candido, com o pequeno mas sugestivo ensaio inicialmente titulado “Gilberto Freyre crítico literário” (1962), e quando republicado em 1993, com o título mais provocativo “Um crítico fortuito (mas válido)”

Seja como for, há no ensaio de Candido muita acuidade perceptiva com relação à função crítico-analítica de Freyre, como quando discorre sobre a “ambiguidade criadora” presente na obra do sociólogo pernambucano: “Nela – na obra –, quando saímos à busca do sociólogo deslizamos para o escritor, e quando procuramos o escritor damos com o sociólogo, Se procurarmos especificamente o crítico, acharemos o estudioso que utiliza impuramente a literatura para os fins de sua manipulação sociológica; mas – continua Candido – a impura utilização torna-se de súbito tratamento vivificante, que retorna sobre a literatura a fim de esclarecê-la, porque a sociologia de Gilberto Freyre, sendo estudo rigoroso, é também visão, e a este título a expressão literária se crava no seu cerne, como recurso de elucidação e pesquisa”. A ligação de Gilberto Freyre com os assuntos literários remonta à sua formação escolar no Recife, na década de 1910 e em parte da década de 1920, se bem que sem orientação estilística definida. Desse tempo importam as leituras de autores brasileiros, hispânicos, portugueses, ingleses e franceses, com uma predileção especial dele pela literatura inglesa.

Neste Vida, forma e cor, podem ser conferidos textos de variado teor artístico-literário, e mesmo “científico”: no campo literário mais estrito, aparecem textos sobre poetas, romancistas, críticos literários e outros tipos de prosadores; na reflexão teórica que se reivindica ampla, ensaios sobre pintores pernambucanos de importância comprovada – Lula Cardoso Aires, Cícero Dias, Francisco Brennand; e, finalmente, os ensaios “culturais” sobre estética, sociologia, língua portuguesa, museologia, todos em conjunção estreita com a literatura.

O que poderia às vezes emergir em tais textos como dispersão crítica metodológica, recebe um reforço significativo da quantidade de informações que eles carregam, como por exemplo, num mesmo ensaio o autor ensejar a análise arguta de um romance de Josué Montello em pouquíssimas linhas, ou expor a condição do drama pernambucano a partir das primeiras experiências de um Ariano Suassuna.

A interdisciplinaridade que se faz presente nestes ensaios resulta de um modo desviante de análise e interpretação de Freyre, com a inter-relação constante de disciplinas, gêneros literários ou tendências da arte moderna. Além da erudição que teima em não se mostrar, em muito pela espontaneidade que se verifica no tratamento com autores brasileiros ou estrangeiros, através da extrema simplicidade com que ele apresenta e defende seus pontos de vista, é uma característica sua o biografismo através de perfis que ficaram famosos, como os que escreveu sobre Euclides da Cunha, Augusto dos anjos e Jorge de Lima.

Se Freyre se sai bem melhor quando se dedica a formular seus julgamentos valorativos de vertente impressionista, sob a perspectiva de um criticismo humanista, não há como negar os seus numerosos acertos, achados e descobertas, inclusive quanto a aspectos formais, mais em prosa que em poesia, mesmo em alguns momentos nos quais ele prende-se demasiadamente às suas impressões e empatias particulares.

(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIV, mar. 2000.)

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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