domingo, 11 de julho de 2010


Arquivo secreto

* Por Fabiana Bórgia


Todo mundo tem uma história para contar. A sua. A dos outros. De ouvir dizer. Não importa. Todo mundo tem.


Hoje não vou contar final feliz. Vou contar um pouco do que vi quando ainda era criança. Lembranças que marcaram. Sei que aprendi muito com isso. No entanto, aprendizagem mesmo vem com a própria vivência, com aquilo que erramos, aprendemos e tentando acertar. Experiência alheia deixa muito. Não sei se o suficiente. Enfim, eu vi. Vi de tudo um pouco. É minha experiência, mas... não morri.

Vi uma pessoa definhando quando a AIDS começou nos anos 80 a matar conhecidos, e ainda diziam que era câncer. Os outros. Nunca minha família, que nunca mentiu para mim.

Vi o corpo não aguentar a lucidez da mente. Vi a vida sucumbir. Vi.
Naquele dia, a pedido de uma amiguinha de infância, toquei piano, com muita dor. Depois parei de tocar. Hoje, não lembro mais. Mas piano continua a ser encantador. Só parei. Simples decisão. Culpei o solfejo.

Outra lembrança foi uma incompreensão que não sei explicar. De não confiar. Ao mesmo tempo, o paradoxo de acreditar. Muito estranho. E a facilidade de lidar com a dor. Com a privacidade. Com o dizer em momentos apenas oportunos. Tudo natural. Como pura aceitação. Com a maturidade, esta calmaria toda, infelizmente, passou. E passei a dizer tudo. Tudo o que sinto, sem precisar dizer.

Lembro do primeiro enterro que fui. Mas estava bem acompanhada. Com minha avó, que desde cedo me mostrou que a morte era a outra face da vida. E que isso também era para ser aceito. Com dor ou não, fazia parte da nossa existência. Entendi. Mas ela não me contou. Apenas mostrou. Compreendi. Assimilei. No entanto, lembro-me do rosto do morto até hoje. Não. Ele nunca me assombrou. E é uma boa lembrança, apesar dos pesares. Era uma morte leve. Um bigode no rosto compreensivo de quem tinha cumprido a missão. Homem íntegro. Não sei nome. Desconheço a missão. Mas foi a primeira imagem da morte. Uma imagem serena, mas que ainda parecia muito distante de mim.
Estes são alguns arquivos secretos, hoje desvendados. Ainda há muitos (continuam secretos). Um deles é entender que não temos nada, que tudo é passageiro, que nós somos provisórios. O outro é tentar conviver com a dor de perder aqueles que realmente amamos, que sempre estarão vivos dentro de nós.

• Escritora por vocação e advogada por formação. Paulista por natureza e carioca por estado de espírito. Engenheira de sonhos: alguém em eterna construção. Autora do livro “Traços de Personalidade”

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