Escritório
do escritor
* Por
Adrino Aragão
Prateleiras
abarrotadas de livros. Num pequeno espaço da parede, reproduções
de Guernica (Picasso)
e Comedores
de Batatas (Van
Gogh), e algumas molduras com fotos do escritor em lançamentos e
palestras em escolas. Sobre a mesa, computador, impressora, resma de
papel, caderno e o telefone dividem o mesmo espaço. Mais livros,
revistas, cadernos e jornais se amontoam no chão, formam labirintos
de difícil acesso. A janela, aberta para o antigo terreno baldio ao
lado, agora ocupado por enormes edifícios de apartamentos, não
permite mais que ele veja o céu límpido e as andorinhas em revoadas
festejando o verão.
Mas
nada disso preocupa nem atrapalha o escritor. Escrever é ato
solitário, exige concentração e solidão. A vida toda, ele
escreveu à máquina. Mas agora foi obrigado a trocar a maquina de
escrever pelo computador, porque as editoras exigem que o texto lhes
seja remetido em disquete, Aí começou o problema, agravado mais
ainda quando, entre uma pausa e outra mais demorada, surge na tela o
homenzinho agitado, consulta o relógio de algibeira, bate nervoso o
pé, uma, duas, três vezes, pergunta em seguida: "Deseja
ajuda?".
O
escritor põe levemente os dedos sobre o teclado, olha a tela do
computador. O homenzinho continua lá, anda de um lado para o outro,
mãos e braços voltados para trás. O escritor sorri e diz: "Vamos,
companheiro. Mas, desta vez, acalme-se, deixe-me escrever sossegado".
A
sala é ampla. Na parede, o quadro com o rosto de Anton Tchekhov.
Próximos à janela, o sofá e duas poltronas e uma penteadeira.
Sobre a mesa de jantar coberta com toalha de linho branco, os pratos
de porcelana, talheres de prata e taças de cristal, todos arrumados
para três pessoas; no centro, duas novas edições de A
gaivota e O
jardim das cerejeiras.
Na banqueta, o balde de gelo e a garrafa de champanhe sobre a bandeja
de prata.
Boris,
alto, forte, cabelos grisalhos, parece ser o mais velho, levanta-se
e, com a taça do champanhe na mão, propõe o brinde.
Andrei,
estatura mediana, cabelos castanhos, barba e bigode bem cuidados,
oferece a taça do champanhe à exuberante Maria, cabelos prateados,
olhos cinza-esverdeados, vestida com elegância.
-
À memória de Anton Tchekhov, o maior escritor do mundo!
Boris,
o pensamento mergulhado no passado, lembra o famoso escritor, as
peças de teatro que ele escreveu e nas quais atuou Boris; já se
passaram dez anos do falecimento, mas Anton Tchekhov permanece vivo
não apenas na memória de cada um dos que ali se encontram reunidos,
mas nos livros e nas peças que deixou. Olhando agora os livros no
centro da mesa, a emoção é tão forte que Boris parece vê-lo
presente, em carne e osso, como se vivo estivesse.
Mãos
apoiando o queixo, Andrei sussurrava o que dissera Anton Tchekhov:
"Odiamos o passado, odiamos o presente e tememos o futuro.
Esquecemos, no entanto, que o futuro que tememos se transforma no
presente que detestamos e no passado que adoramos." Anton
Tchekhov sabia das coisas, mais do que qualquer outro; mostrou isso
sutilmente em cada obra que escreveu. Como no conto em que relata a
história do esquisito professor de grego que, mesmo com o céu
claro, o tempo bom, saia de galocha, guarda-chuva e sobretudo forrado
de algodão. Se não bastasse, ele vivia prisioneiro numa redoma,
para defender o culto à língua de Homero e ao passado que amava, de
qualquer interferência da realidade que o mantinha em sobressalto
permanente.
Maria
encaracolava com os dedos a mecha de cabelos, perdia-se em devaneios.
Ah, meu querido Anton, não há um dia que eu não me pergunte por
que você escolheu Olga e a não a mim, a sua "linda princesa
dos contos de fada", às vezes me ponho a dizer alto, na
tentativa de convencer a mim mesma, como Daniacha, a personagem em O
cerejal:
"Ele me ama, ele me ama tanto!". Chego a sentir arrepios.
Boris
rompe o silêncio: estamos os três reunidos para homenagear Anton
Tchekhov. Sem discursos, sem formalismos. Anton tinha horror a essas
coisas. Gostava de simplicidade; aliás, simplicidade e concisão eis
os dois pontos fundamentais da estética de vida e de literatura de
Anton Tchekhov. Preciso ser conciso, explico-me. Cada um de nós tem
boas lembranças dele. Sugiro que cada um conte alguma coisa sobre
ele, mesmo que seja trivial, alguma confidência, por que não? Quem
começa? Você? Ou você?
Eu?
Por que eu?
(Fragmento
da novela O
Champanhe,
de Adrino Aragão. LGE Editora, Brasília, 2007)
*
Ficcionista
e poeta amazonense.
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