O
homem do contra
* Por
Gustavo do Carmo
No
berçário da maternidade, entre dezenas de bebês, alguns chorosos,
outros famintos, boa parte dorminhoca, o destoante corpo gorducho de
Concórdio era o único que se aventava no lado oposto do berço.
Concórdio
levou quase dez meses para nascer. Fez sua mãe tirar
licença-maternidade aos cinco de gravidez porque sua barriga já
parecia ter noventa dias a mais. Dona Linda foi internada no sexto
mês porque o menino estava tão grande que poderia nascer,
prematuramente, a qualquer momento. Demorou três semanas além dos
nove meses normais. Veio ao mundo no meio de um engarrafamento. Do
hospital para casa.
Sim.
Do hospital para casa porque sua mãe tivera alta, horas antes, por
causa da demora do parto. O plano de saúde dos seus pais não queria
pagar mais uma semana de internação. Ela já estava há quase dez
meses e nada do bebê nascer. Só para contrariar, a bolsa estourou
no meio do trânsito.
O
parto foi feito pelo próprio pai que, horas antes, reclamava,
mal-humorado, do trânsito tão ruim que desejava estar num concorde.
Querendo brincar com a situação, Seu Almir decidiu homenagear o
avião supersônico e o batizou de Concórdio Diverges da Silva.
Apesar
do hipotireoidismo
com o qual nasceu e de ter emagrecido bastante com o tratamento,
Concórdio cresceu saudável. Mas, aos cinco anos, já tinha as suas
próprias opiniões. Só aceitava ordens dos pais quando eram
necessárias para a educação. Era uma das poucas crianças que
adorava comer verduras e legumes. Praticamente a única que não
gostava de ganhar brinquedos. Pedia roupas e livros de presente.
Nas
brincadeiras com os amiguinhos, sempre inventava uma coisa para
discordar. Era chamado de chato. Na escola, costumava questionar as
explicações da professora. Principalmente nas aulas de história.
No teatrinho infantil, falava diálogos que não estavam no roteiro.
Quando
chegou ao segundo grau, seus colegas organizaram uma passeata para
derrubar um presidente da república. Concórdio se recusou a
participar. Era o único contrário ao impeachment.
Foi vaiado por todos. Mas não se importou com isso.
Filho
de um casal de advogados, neto de juízes e sobrinho de procuradores,
Concórdio decidiu cursar medicina. Apesar de não concordar em
participar do trote e do chopp
com os amigos no bar da esquina, o jovem enturmou-se facilmente com
os colegas. Logo entrou no conselho do DCE da faculdade. Mas
discordava de tudo e de todos. Suas ideias revolucionárias iam
sempre contra aos interesses da reitoria. Era sempre voto vencido nas
reuniões deliberativas. Suas sugestões nunca eram aprovadas.
Abandonou o diretório. Formou-se.
Casou-se
com Duadeleine Regina, a servente da universidade, magra como um
esqueleto, corcunda, dentes superiores bem pronunciados, queixos
pontudos, nariz idem. As olheiras chamativas como um panda davam-lhe
um aspecto sôfrego e agredido. Isso não impediu a paixão de
Concórdio pela moça. Tiveram dois filhos: Concórdio Júnior e
Leila Sara.
Concórdio
começou a exercer a profissão atuando como residente no hospital da
universidade. Mesmo tendo uma rotina de quatro horas diárias para
cumprir, fazia questão de trabalhar o dia inteiro no hospital. E
ainda pediu para aumentar a carga diária. Achava pouco.
Odiava
concursos públicos. Não fazia nem para a sua profissão. Graduou-se
em uma faculdade particular. Sempre trabalhou em hospitais privados.
Ganhou experiência e se tornou um cardiologista respeitado. Integrou
diversas equipes médicas. Primeiro como terceiro auxiliar. Foi
subindo até chegar ao posto de chefe. Em todas as posições que
ocupou, sempre discordou dos companheiros. Recusou um cargo de
diretor-geral no Instituto do Coração, em São Paulo. Ganharia
cinco vezes mais. Quis ficar no Rio, onde nasceu e foi eleito
presidente do conselho regional de medicina.
As
suas ideias contrárias à maioria se tornaram a sua marca
registrada. Muitas delas ajudaram a torná-lo um homem ético. Outras
geravam críticas e protestos. Ficou famoso.
Opinava
sobre todos os problemas do país. Não se importava em criar
polêmicas. Era contra as favelas. Não as comunidades carentes. Para
Concórdio, o governo deveria dar moradia e educação em vez de
incentivar as construções irregulares em troca de votos. Também
não aprovava o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A natureza
concebeu o homem e a mulher para a reprodução. Segundo ele, as
pessoas têm o direito de obter prazer em uma relação homossexual,
mas que sejam discretas. Também acredita que a sociedade está
incentivando e quase impondo o homossexualismo. Repudia a violência
discriminatória, mas tolera o preconceito, porque conceitos podem
ser mudados. É uma característica humana.
As
únicas idéias que Concórdio defendia era a prisão perpétua com
trabalhos forçados e pena de morte – somente para presos de alta
periculosidade – contra a violência, além do controle de
natalidade e o aborto para diminuir a miséria. Ainda assim, são
teorias que vão contra a igreja e a atual sociedade.
Concórdio
estava consciente de que, com as suas opiniões, nunca seria eleito
para nenhum poder legislativo. Tornou-se deputado federal ao herdar o
mandato de um amigo de quem era suplente. Criou diversos projetos de
lei benéficos para o país, mas contra os interesses de um estado
democrático. Todos rejeitados. Ao votar nos outros projetos, era
sempre vencido. Como nos tempos do diretório estudantil da
faculdade.
Somente
uma vez Concórdio concordou com a maioria. Votou a favor da
absolvição de um colega deputado, acusado de corrupção ativa e
quebra de decoro parlamentar. Não foi chantageado e nem coagido para
defender seu companheiro de bancada. Votou por amor. Amor de pai.
Concórdio Júnior foi absolvido por unanimidade.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração.
Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de
São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
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