quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Homenagem à Vó Tinhoca

* Por Marcelo Sguassábia

A Vó Tinhoca era uma velha muito da xexelenta e da maledicente. Do tipo ranzinza que ronca e fuça, que estorva e bisbilhota onde não é chamada, onde não é desejada e muito menos útil. Seria em seu tempo o que hoje designamos “mala”. Uma mala gasta, feia e abarrotada de tudo o que possa existir de odioso na face da terra.

Nascida Antônia Leocádia di Piero Vantruz, nossa homenageada viveu 97 longos anos a serviço único da fofocaiada rasteira, incumbência a que se entregava com prazer e sofreguidão. O boato era sua vida e sua cachaça, e a esse vício era de tal forma dedicada que abdicou de marido e filhos para fazer dele o seu sacerdócio.


Filha de Maria, ostentava uma beatice de fachada, mas que lhe valia certo verniz de honorabilidade e lhe franqueava o ingresso a alguns salões mais exclusivos e bem frequentados, de onde retirava valiosa matéria-prima para produzir injúria.

Não obstante a manipulação sacrílega que fazia da religião, tinha lá seus santos no oratório doméstico, e era bom mesmo que tivesse para se aliviar de tantas e pesadas culpas. Mas quem conheceu a velha a fundo jura que ela abusava de São Tomé e de São Jorge para coisa bem diversa da remissão dos pecados e do alívio da consciência. Na verdade, apoquentava as figurinhas de gesso com promessas para descobrir segredos de alcova da vida alheia, escândalos iminentes, calotes insuspeitos, amores clandestinos, passos em falso de figuras ilibadas da sociedade jacutirense. A delícia da desdentada era dar com a língua na banguela, destilando febrilmente seu veneno nas casas de comadres, em infindáveis diz-que-diz-ques guarnecidos por suspiro e suco de pitanga. A velha era uma “véia”, e é preciso que se diga que entre velha e “véia” há uma colossal diferença de sentido. Quem é da região do Vale do Jequitinhonha, berço e túmulo de Tinhoca, sabe bem do que estou falando.

O fato é que nossa heroína ia aniquilando reputações de casa em casa, os olhos esgazeados e a boca murcha, com batom fora do contorno, tremendo de gozo a cada vez que explodia a “bomba” da ocasião no ouvido alheio. Feito o serviço, ria seu riso rouco e desafinado de bruxa da carochinha, sacudindo os peitos derrubados debaixo da papada gorda e cheia de dobras.

Tamanha era a ânsia em passar adiante a fofoca fresca que ela, com a jugular pulsando e a respiração entrecortada, respingava doses cavalares de saliva sobre o ouvinte, o que lhe granjeou, além da mais do que justificada fama de candinha, a alcunha de “Tinhoca Chuvisco”. Dependendo do teor da novidade, Tinhoca era um verdadeiro aspersor, capaz de estancar a seca do sertão com meia hora de mexerico.

Dito isso, você, leitor complacente, me pergunta: “Sim, mas e daí?”

E daí que era só isso o que eu queria, pintar um retratinho pálido e despretensioso da velha Tinhoca, essa verdadeira indústria de calúnia e difamação. E homenageá-la falando um pouco mal dela, que é o que ela mais gostava de fazer com todo mundo. Mas, pelo amor de Deus, que isso fique só entre a gente, heim? Não vai espalhar.


* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).




Um comentário:

  1. Uma Tinhoca com um retrato tão bem feito que deu para espremer cravos na cara dela, de tão nítido, e em close que foi.

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