quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Eu tenho diabetes


* Por Mara Narciso
 
Desde menina, e isso teve importância na minha escolha profissional, minha mãe Milena me contava das dificuldades pelas quais passava uma colega, diabética (como se dizia até outro dia) desde os 11 anos de idade. Seu diagnóstico foi em 1945, apenas 23 anos após a descoberta da insulina. A menina precisava tomar uma injeção de insulina todos os dias, e sua vida dependia desse medicamento. Na hora do recreio, uma moça trazia a merenda, um copo de leite, duas pedrinhas de sacarina e uma fatia de queijo. Anos depois, já adulta, fazia o teste de glicose na urina. Colocava urina num tubo de ensaio, misturava o reagente de Benedict, levava ao fogo, aquecendo até acontecer a reação. A presença de glicose na urina mudava a cor azul da mistura para marrom, e quanto mais escura, mais glicose tinha, o que a fazia decidir sobre qual a quantidade de insulina tomar. A insulina era extraída do pâncreas de boi e porco, e, impura, dava lipodistrofia - saliências e afundamentos na pele. A seringa era reutilizável e de vidro, a agulha longa e rombuda e ambas eram fervidas no estojo com água, sobre álcool e fogo. As aplicações, para não ficarem profundas, eram feitas na região lateral externa do antebraço, com o artefato em 30 graus. Os exames de glicemia (glicose no sangue) eram raros e a dieta era de alta restrição de carboidratos. Depois começou a usar a insulina regular, que tem ação rápida, nos momentos de glicose muito elevada. Os desmaios por hipoglicemia (glicose baixa) eram frequentes, e muitas vezes ela foi encontrada em coma pelo marido. Essa mulher teve dois filhos. O primeiro nasceu bem e morreu logo depois de hipoglicemia. Não foi feita nenhuma glicemia naquela gravidez. O segundo filho nasceu surdo. As novidades foram sendo usadas, como glicemias capilares, insulinas ultrarrápidas, insulina humana e assim por diante. Ela viveu com Diabetes Mellitus tipo 1 dos 11 aos 69 anos, quando veio a falecer de infarto. Não manifestou alterações graves de visão, função renal nem das pernas. Era responsável e aderente ao tratamento. Viveu bem, consideradas as limitações tecnológicas da época do diagnóstico.
 
Uma menina que hoje manifeste diabetes tem a sua disposição, além da insulina NPH humana feita sinteticamente pela técnica do DNA recombinante, inúmeras alternativas de análogos de insulina, com suas peculiaridades e maior estabilidade, com ação e oscilações glicêmicas mais previsíveis. Essa seria a insulina basal, ou seja, a do jejum. As seringas são descartáveis e de agulhas finas, curtas e confortáveis. São populares as “canetas de insulina”, nas quais o produto está acoplado e tem um dosador, sendo de fácil utilização e transporte. As aplicações são nos braços, abdômen, coxas e glúteos, e as gravidezes são mais seguras. O lema é medir e corrigir. A monitorização da glicemia capilar em casa é de domínio da população, assim como o uso das insulinas ultrarrápidas. Estas são de ação curta, cobrem as refeições e são usadas há 20 anos, imitando, em parte, o funcionamento do pâncreas. Esse órgão, atrás do estômago, produz insulina e tem um medidor ultra preciso, produzindo o hormônio exatamente na quantidade necessária para o momento. A insulina é a chave que abre a célula para levar a glicose, o nosso combustível, para dentro dela, para ser usada na produção de energia. A dieta não é mais tão proibitiva, havendo maior flexibilidade. Picar o dedo não é a única maneira de saber a glicemia. O cateter do sensor FreeStyle Libre, de 2015 colocado no braço faz a medição no líquido intersticial (aquela “aguinha” que sai nos ferimentos superficiais) e é trocado a cada 14 dias. O leitor informa a glicemia a todo instante, bastando para isso ser passado sobre o medidor. Os exames anuais de fundo de olho e urina de 24 horas informam quando outros cuidados deverão ser tomados com olhos e rins. Como substituta das injeções de insulina, existe também a Infusão Contínua de Insulina – Bomba de Insulina-, na qual uma máquina menor que um celular injeta a insulina ultrarrápida basal conforme programação. Nesse sistema, há também a aplicação de insulina em bolus, conforme a glicemia do momento, para correção, assim como cálculo da necessidade conforme a refeição, por estimativa ou contagem de carboidratos.  Há necessidade de picar o dedo, mas já existe o sistema medidor e aplicador acoplados. Isso já existe em alta escala, ainda que, pelo preço, não esteja ao alcance de todos. O portador de diabetes, conforme padrões comportamentais e alimentares, associados à carga genética e grau de controle, terá um tempo de vida a cada dia mais próximo daquele previsto para o seu grupo social.
 
Evitar as complicações já é possível. O Dia Mundial do Diabetes, comemorado no dia 14 de novembro, é o momento de divulgarmos os avanços e conscientizarmos acerca da doença, além de lançar luz contra o preconceito.
 

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



2 comentários:

  1. Excelente, Mara. Muito do que você diz eu já conheço e vivencio no dia a dia, pois minha esposa é diabética insulino-dependente desde os 12 anos. Abraços!

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  2. O maior desafio não é controlar a glicose, algo indomável, mas encontrar motivação diária para tentar domá-la. Obrigada, Marcelo!

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