quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Os reis do drama


* Por Analu Faria


Olho pro garotinho com uma casca de ferida enorme no joelho e digo: ai, isso deve doer. "Dói nada, quer ver?" E arranca um pedacinho da casca, expõe uma pele quase em carne viva, a ferida sangra. A mãe do garoto me olha com cara de poucos amigos e dá bronca no filho. Maroto, o menino esconde da mãe um sorrisinho transgressor, que reserva para mim. Penso que o garoto pode ter tendências psicopatas, talvez fosse bom uma avaliação psiquiátrica, psicológica... melhor não ficar perto, vai que ele tem um canivete, um estilete ou algo assim escondido, meu Deus, eu posso ser morta por um menininho!

Minha mãe costumava dizer para os filhos: "Não corram na sala, que eu tô vendo a hora de vocês racharem a cabeça na quina da mesa", colocando uma ênfase especial em "racharem a cabeça". Talvez um "... que vocês vão se machucar" fosse suficiente. Lembro-me de que, já mais velhos, a frase virou motivo de piada para mim e meu irmão: "Cuidado que você vai RACHAAAAAAAR A CABEÇAAAAA na quina da mesa".

Meu pai nunca deve ter chegado atrasado a qualquer compromisso que tenha marcado. Isso porque toda vez que íamos viajar, ele chegava umas duas horas antes no aeroporto ou na rodoviária. Se a viagem era de carro e saíamos de madrugadinha, ele já começava a acordar com as galinhas, uma semana antes, "para acostumar". Já melhorou: hoje ele chega uma hora e meia antes da partida do voo, mesmo já tendo feito check-in e sem mala para despachar.

Percebe-se que o drama corre na família. O único que não endrameava as coisas era meu irmão, mas o garoto também era alto (o resto da família é de baixinhos) e todo paz e amor (o resto da família é meio briguento), ou seja, um ponto fora da curva. Se não se parecesse com meus pais, eu diria que foi trocado na maternidade. Tive a felicidade de conviver com ele durante 25 curtos anos e sinto sua falta só quando eu respiro.

Ele faleceu deixando um rastro de tranquilidade suficiente para que, ao pensar em seu sorriso, eu aceite com mais compaixão a natureza hiperbólica dos meus pais e a minha própria. Louvo o exagero desta minha família de reis do drama quando penso que é essa explosão de coisas do espírito que me faz pensar no meu irmão como o melhor irmão de todos os tempos, desde os primórdios da existência até depois do infinito. É também o que me faz gargalhar, mesmo estando em público, ao lembrar das piadas que fazíamos sobre nossos pais.


* Jornalista.



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