quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Os meninos do Chaco


* Por Urda Alice Klueger


Excerto do livro"Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006
 
Então paramos em mais um posto de abastecimento ao longo da longa tira de asfalto que cortava o Chaco argentino. Eu morria de fome, e tratando de cumprir as ordens, não esperei por ninguém: tratei logo de conseguir comida, uma deliciosa carne fria com muita pimenta e batatas frias, pelo que entendi, prato típico daquela região. Assim, quando os meus amigos harleyros vieram comer, eu já estava acabando, e tive um pouco de tempo para ficar zanzando por ali. A primeira coisa que vi fora do restaurante foram três meninos, que teriam 8 ou 9 anos. A segunda, foi um telefone.

Como no Brasil, na Argentina existem diversas companhias telefônicas (penso que tão multinacionais quanto as do Brasil – é tudo muito parecido, quando se compara Brasil e Argentina), e dependendo o telefone que a gente tem pela frente, pode-se ligar a cobrar, ou comprar um cartão, ou ligar via telefonista, etc. Eu estava sem saber como fazer para usar aquele telefone para ligar para a minha mãe, e os meninos me ajudaram. Comprei o cartão que eles me indicaram, e eles ficaram comigo todo o tempo, até eu conseguir ligar para a minha mãe. Até então falara espanhol com eles, mas com minha mãe falei português, que eles ficaram ouvindo, boquiabertos, admirados. Minha mãe queria saber das novidades, e lhes contei como havia conhecido meninos argentinos, como eles tinham me ajudado, etc., e ela lhes mandou abraços, etc. Quando desliguei o telefone vi o quanto estavam pasmos:
- Nunca haviam ouvido falar português? – quis saber.

Não, era a primeira vez. Disse-lhes, então, os recados da minha mãe, o que pareceu encantá-los. Perguntei-lhes se sabiam onde era o Brasil. Deram-me a impressão de já terem visto no mapa, na sua escola.
- Vocês sabem que o Brasil é o segundo país mais importante no futebol? – aticei-os.

Eles não sabiam. Quis saber qual era o primeiro país do mundo no futebol.
- Argentina! – disseram-me sem pestanejar, escandindo bem as sílabas, naquele jeito tão próprio dos argentinos falarem o seu espanhol, com uma sonoridade que, em português, poderíamos chamar de “argentina”.

Perguntei aos meninos se eles conheciam Pelé. Não, não conheciam. Há que se considerar que aquele lugar era mais ou menos o fim do mundo, um pobre posto de abastecimento no meio da poeira e da secura do Chaco Argentino, algum lugar longe de tudo e de todos (depois soube que se chama Pampa de los Guanacos), e também há que se considerar que eles eram muito jovens, nem chegados, ainda, aos 10 anos. Mas mesmo assim espantei-me: eram as primeiras pessoas com quem eu falava, no mundo, que não sabiam quem era Pelé.
- E Maradona, conhecem?

Eles se abriram em sorrisos. Sim, Maradona eles conheciam, e como! Era seu orgulho e sua alegria, talvez uma das poucas, naquela distância deserta, distância de cactos e cabras.

Testei mais um pouco o seu conhecimento de mundo.
-E onde está Maradona atualmente?
-Em Cuba! – de novo o acento argentino no espanhol que falavam!
-E que faz Maradona em Cuba?
-Está a tratar-se.
-Mas de que?
-Porque tomou drogas, que lhe fizeram mal.
-E drogas fazem mal?
-Sim, sim, drogas fazem muito mal às pessoas! Nunca devemos tomar drogas!

Fiquei a matutar como aquelas informações recentíssimas teriam chegado até eles. Através da escola? (Porque, com certeza, haveria alguma escola ali por dentro da secura do Chaco!) Através da televisão? (Porque, com certeza, haveria televisão, também, ali no meio da mesma secura salgada!) O fato é que meninos argentinos que vivem numa região tão desolada quanto a caatinga brasileira sabem coisas da sua realidade de uma forma que me deixava espantada. Terão os meninos brasileiros da desolação da caatinga informações do mesmo nível?

Chamou-me a atenção como o menino menor olhava encantado para o meu anel. Esse menino deveria ter um ano menos que os outros, e era bem moreninho, com uma carinha índia, ao contrário dos amigos, que tinham carinhas europeias. Meu anel parecia encantá-lo. Era um anel sem valor algum, que custava algo como meio dólar, mas que ostentava vistosa e enorme pedra falsa cor-de-rosa. Acabei tirando o anel do dedo e dando para o menino, que ficou a segurá-lo nas mãos como se ele ardesse, tamanha a sua surpresa. Eu via que ele estava tão espantado que não sabia o que fazer. Disse-lhe:
- Olha, esta cor não é uma cor própria para um menino. Tu o guardas para dar para uma namorada, quando tiveres uma.

Encantado, o menino não conseguia desviar os olhos daquela joia colorida. Entendi que o tempo de ter uma namorada ainda era uma coisa distante demais para ele, e tentei melhorar a coisa:
-Por enquanto, tu podes dar o anel para tua mãe usar quando for à igreja!

Aquilo pareceu ter maior consistência: as mães eram reais e com certeza, aquele povo tão devoto deveria frequentar algum tipo de igreja.

Vi como os outros meninos estavam decepcionados por não ganharem um anel também, e então lhes dei algumas moedas, e acabei tendo um papo com eles sobre eles arranjarem escovas e graxa para engraxarem sapatos ali no posto, que parecia que era o único lugar do mundo a que tinham acesso onde ocorria algum movimento e onde poderiam conseguir alguns níqueis. Entenderam-me num instante, ficaram encantados com a ideia, principalmente quando lhes disse que era assim que os meninos no Brasil faziam. E tive, afinal, que subir numa Harley e deixar aqueles meninos lá naquele distante lugar do Chaco, mas acabei por trazê-los no meu coração.

Assim, parodiando Saint-Exupery, eu lhes digo: se um dia algum de vocês passar pelo Chaco Argentino, e lá, na mais distante e afastada das paradas, encontrar três meninos trabalhando de engraxate, e um deles tiver no dedo um anel com uma grande pedra cor-de-rosa, por favor, me avise. Tenho deles uma saudade muito grande, e seria como receber um presente do destino saber de alguma notícia deles. O coração tem leis que a gente não pode prever.




* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).

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