terça-feira, 4 de abril de 2017

O mais democrático dos sentimentos



A vaidade é, digamos, o “mais democrático” dos nossos sentimentos. Não conheço uma única pessoa que não se sinta vaidosa por algum motivo: pela suposta beleza, pela inteligência, pela cultura, pela esperteza e até, por paradoxal que pareça, pela sua alegada modéstia, etc.etc.etc. Milhares de etceteras.... É verdade que muitos exageram na dose e, como tudo o que é demais, caem em ridículo, mesmo que não se apercebam. Entendo que, se não for exagerada, trata-se de um “pecadilho” menor, tolerável, digamos, de um pecado venial que nem merece tanta condenação. Afinal, quem somos nós para julgar a vaidade alheia? Ela também é chamada, a meu ver impropriamente, de “orgulho, ostentação, presunção, futilidade, algo sem valor, soberba ou amor próprio”.

E no que ela consiste? No fundo, no fundo não passa do profundo desejo de atrair a admiração das outras pessoas. Quem nunca pretendeu isso?Da minha parte, não nego, esse é um empenho constante. O indivíduo vaidoso (diria, todos nós) cria (às vezes com fundamento, mas nem sempre) uma imagem pessoal exclusivamente para transmiti-la aos outros. A finalidade é, logicamente, a de ser admirado e invejado.

A escritora inglesa do século XVIII, Jane Austen, observa o seguinte sobre esse sentimento: “A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós”. Concordo com a observação dessa mulher talentosa e inteligente, que tinha, como principal característica, a ironia que utilizava para descrever seus personagens. Por isso, não estranho o fato dela ser incluída entre os clássicos da Literatura da terra de William Shakespeare.

A mesma diferenciação feita por Jane Austen, posto que mais detalhada, podemos encontrar em um texto não tão conhecido de Fernando Pessoa, incluído no livro “Da literatura européia”. O original escritor dos heterônimos escreveu a propósito: “O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito; a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso. É difícil à primeira vista compreender como podemos ter consciência da evidência do nosso mérito para os outros, sem a consciência do nosso próprio mérito”.

E Pessoa conclui assim sua arguta observação: “Se a natureza humana fosse racional, não haveria explicação alguma. Contudo, o homem vive a princípio uma vida exterior, e mais tarde uma interior; a noção de efeito precede, na evolução da mente, a noção de causa interior desse mesmo efeito. O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em ação”. E não é?! O (sem favor algum) mais completo estilista de língua portuguesa, padre Antonio Vieira, classifica a vaidade como um “vício” (o que, de fato, é). Compara-a, metaforicamente (ele que foi um mestre da metáfora) a um astuto pescador, sempre à espreita para enganar com sua isca um peixe, para assim pescá-lo. Disse, em um de seus tantos memoráveis sermões: “A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens”. E como engana!

A Literatura trata (e sempre tratou) extensamente desse tema. Afinal, trata-se, ao fim e ao cabo, de alguém escrevendo sobre alguém para outro alguém ler. E, como William Shakespeare observou, em certa ocasião: “Nenhum assunto interessa mais o homem do que o próprio homem”. Ouso afirmar que não existe nenhum livro, seja de que época ou de que gênero for, que não aborde a vaidade em algum de seus tantos aspectos, mesmo que indiretamente. E isso vale tanto para ficção quanto para não ficção. Para poesia ou prosa. Para Filosofia, Antropologia, Sociologia e vai por aí afora. Tratarei, oportunamente, de alguns livros e autores que trouxeram á baila esse polêmico e recorrente assunto.

Por hoje, encerro estas descompromissadas reflexões com este poema de Florbela Espanca intitulado (e não poderia deixar de ser) de “Vaidade”:

“Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!”.

A vaidade, como se vê, é mesmo, sem dúvida, o “pescador astuto”, citado por Vieira, sempre à espreita, pronto para nos enganar e para nos fisgar como ingênuos peixes que somos...

Boa leitura!

O Editor.

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