quarta-feira, 12 de abril de 2017

Essa mania de passado que essa tal de internet traz


* Por Mara Narciso


Foi em 1973 que eu estudei para o vestibular da Faculdade de Medicina do Norte de Minas, hoje Unimontes. Ficava amarrada nos estudos durante 16 horas por dia, com breves intervalos. Pela manhã, terceiro ano científico no Colégio São José, com mergulhos na Química Orgânica, da qual não errava nada. Muita Biologia, Português e teoria de Física. Matemática é um problema, então me desdobrava nas outras. À tarde, estudava com Ieda Rabelo e Cristina Rebello em minha casa, um apartamento singelo na Avenida Santos Dumont. Fazíamos deveres, pesquisas e estudávamos o conteúdo da aula daquele e do próximo dia. Nas provas ficávamos ainda mais concentradas. À noite, fazia revisões do primeiro e segundo anos. A tarefa atravessou o ano inteiro. No meu alheamento, não vi Carnaval, Semana Santa, Natal, Réveillon, rádio nem TV.

Na virada do ano, meus pais foram com minha irmã a Niterói. Eu fiquei. Na hora do foguetório, estava só em casa, com um livro na mão, olhando a cidade pela janela. No dia 9 de janeiro começaram as provas. Para passar era preciso viver uma imersão completa. O que era notícia acontecia lá fora, e a gente tinha breves flashes.

De Niterói, meu pai, Alcides Alves da Cruz trouxe duas fitas mini cassete. Cada uma trazia 45 minutos de música, num sistema facilmente deteriorável, e de difícil reprodução, pois eram fitas frágeis, que se deslocavam da carretilha e entravam no sistema de reprodução do som. O engasgo fazia tudo parar, sendo preciso desligar, puxar a bucha de dentro da máquina, e torcer para que voltasse a reproduzir música. Desta vez, meu pai inovou em relação ao seu gosto musical. Ele, que só ouvia Roberto Carlos no carro, trouxe Raul Seixas (Krig-Ha Bandolo) e Secos & Molhados, ambos revolucionários.

Foram discos tão marcantes (LP – Long Play), que tornaram seus cantores eternos, imortalizados pela grandeza do que fizeram. Corriam os Anos de Chumbo, a fase mais dura do sistema ditatorial do Brasil de então, que durou 21 anos e, pelos números oficiais desapareceu com 434 brasileiros contrários ao regime e a perda de liberdade política e de opinião. O General que ocupava o poder era Emílio Garrastazzu Médici.

Ser opositor ou amigo de opositores ao governo era ameaçador, assim como ter em casa ou portar material de coloração esquerdista, então chamado subversivo, eram risco de vida. Havia a música de protesto e a censura, que picotava tudo, suprimia versos, borrava fotos, metia a tesoura nos filmes. Todos os tipos de opressão estavam a postos, cortando, podando, calando, amputando, torturando e matando. Tudo era proibido, e os jovens, de um modo geral, pouco afeitos a se calar, mesmo com mordaça, eram presos, especialmente jornalistas, artistas, cantores e compositores. Muitos fugiram para o exílio.

Diante desses acontecimentos, ouvir Secos & Molhados, com João Ricardo (compositor e criador do grupo), Ney Matogrosso e Gerson Conrad era uma dádiva, uma festa, mesmo que o protesto deles tenha sido dissimulado, até por esperteza. Falavam de sangue latino, fadas, pirilampos e rosa de Hiroshima. Musicaram poemas de Vinícius de Morais e Fernando Pessoa. O mais incrível do grupo eram a postura e extravagância da maquiagem e da vestimenta (ou seminudez) do seu crooner Ney Matogrosso, que cantava com voz fina afinadíssima, e dançava com um requebro bamboleante de inacreditáveis sensualidade e ousadia. Por isso mesmo, a apresentação tinha um efeito incendiário.

No perfil do Facebook do meu recém-descoberto tio Reginaldo Pereira Barbosa encontrei um vídeo dos Secos e Molhados, de 1973, no dia 4 de abril à meia noite. Compartilhei embasbacada a música “Sangue Latino” numa performance explosiva de talento e audácia. Ainda que a gravação feita em estúdio da Rede Tupi tenha qualidade sofrível, recebeu mais de 300 mil visualizações em 4 dias, e agora está em 1.785.097.

Disputas internas acabaram com o grupo e Ney Matogrosso mantém brilhante carreira solo. A sua imagem andrógina fez meu afilhado Rodrigo Marques, na época, uma criança pequena, dizer: essa mulher se parece com um homem. Vê-los e ouvi-los hoje – 44 anos depois, ainda deixa o espectador estupefato com a atualidade, qualidade dos arranjos, voz e especialmente a cegueira da censura que não conseguiu fazer a leitura adequada do que viam, ou como disse meu amigo Guilherme Souza, “ficaram em estado de choque pela ousadia e não sabiam como enquadrá-los”. Então, escapou do corte, para o nosso deleite.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


2 comentários:

  1. A primeira agência de propaganda em que trabalhei tinha como um dos diretores de arte o Décio Ambrósio - criador da lendária capa das cabeças cortadas e servidas à mesa. Infelizmente, quando comecei meu estágio lá, o Décio, já velho de guerra, tinha ido para SP. Abraços, Mara.

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  2. Ação perfeita de marketing, ainda hoje atual, pois continua a funcionar. Gênio total, o Décio Ambrósio.

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