sábado, 9 de julho de 2011







A pergunta do Parafuso

* Por Edmundo Pacheco


- Polaco, você redige??

A pergunta me pegou de surpresa. Olhei pra trás e fiquei mudo.

Jogava dominó com alguns amigos, no Bar do Mineiro, na Vila Nova, em frente ao DER (Departamento de Estrada de Rodagem). Eram umas 8 horas, de uma noite de setembro de 1974. Não me lembro o dia exato, mas o mês e o ano ficaram anotados num desenho que fiz naquela noite, tentando imaginar o quê o amigo “Parafuso” queria saber.

Parafuso (acho que o nome era Roberto) era um dos rapazes mais velhos do bairro e um dos poucos que tinha um emprego. Era repórter policial do recém criado O Diário de Maringá. E repórter tinha status de autoridade. Ainda mais sendo mais velho e empregado. Parafuso era uma figura sinistra pra nós, garotos de 14, 15, 17 anos. Nunca o víamos saindo pro trabalho (claro, ninguém do meu grupo acordava antes da uma da tarde), apenas voltando, sempre aí por 10 da noite. Descia do ônibus e ia pra casa, sem nunca dos dirigir uma palavra.

Ele era repórter, sabe? Repórter policial do O Diário, não ia mesmo falar com a molecada do bairro...Mas naquela noite, misteriosamente ele fez duas coisas estranhas: chegou mais cedo do trabalho e me dirigiu a palavra. Fiquei estarrecido. Não porque o Parafuso falara comigo. Ele era irmão de um dos rapazes do meu grupo e já havia até me dado um bom dia ou outro. Mas porque eu simplesmente não tinha idéia do que ele havia me perguntado.

Como fiquei mudo, olhando pra ele com cara de pastel, ele virou as costas e foi embora. Eu ainda perguntei pros colegas de dominó (nós éramos viciados em dominó) se sabiam o que ele havia perguntado. E todos deram de ombros.
- O que será que o Parafuso queria saber?

Eu tinha 16 anos e não queria nada com a vida. Tive uma infância difícil. Meu pai desaparecera e minha mãe se casara com um cara que nunca tolerei. Cresci aos trancos e barrancos, fazendo pequenos serviços e vivendo mais na rua que em casa.

Dos 10 aos 14 anos fui limpador de banheiros num posto de gasolina, ajudante de churrasqueiro numa churrascaria, balconista de lanchonete, catador de lavagem, tratador de cavalos e limpador de tripas (meu amado padrasto matava porcos e fornecia a açougues da região e eu era encarregado de limpar as vísceras pra usar em lingüiças ou mesmo comer. Amigo, tripa frita é uma delícia. Pode acreditar!!).

Além, disso, fui moleque de rua nas horas vagas. Sempre que podia, fugia da favela onde vivia e ia viver por aí. Com freqüência pegava carona pra Curitiba e corria a cidade procurando a parte da minha família perdida (mas essa é outra história). Aos 14 anos, consegui meu primeiro emprego fixo. E me encontrei, pela primeira vez, com minha famosa sorte (sorte pra arrumar emprego, porque nunca tive sobre par mais nada na vida).

Estava perambulando pela Avenida Brasil quando, na frente da Genko, me deparei com um cartaz colado de ponta-cabeça numa vitrine. Parei e fiquei tentando ler o que estava escrito. Vendo a curiosidade, o sr. Henrique Ando, dono da Casa Henrique Tecidos Finos, saiu à calçada e me perguntou se havia me interessado pelo emprego. Foi então que entendi o escrito: “Precisa-se de pacoteiro”. Nunca tinha feito um pacote, mas aceitei o emprego e ali fiquei por cerca de 2 anos. Aprendi muito com o seu Henrique e com a esposa dele, dona Dolores. Aprendi, por exemplo, a catar coco de cachorro (é que além de fazer pacotes, tinha que limpar a loja e, nas horas vagas limpar o apartamento deles. E um dos trabalhos mais interessantes que tinha lá era recolher as fezes dos 2 poodles deles).

Quando saí da Casa Henrique, voltei aos bicos e às ruas: colhi café em Maringá (dói a mão pra cacete!!), colhi batatas em Carambei (dói as costas...), fui pintor (de paredes... dói os braços) e balconista de lanchonete em São Paulo (dói as pernas); e feirante em Maringá (dói acordar ás 4 da madrugada todos os dias). E, entre tantas experiências interessantes e dolorosas, descobri o que realmente gostava de fazer: escrever.

O problema é que escrever não dava (e continua não dando) dinheiro algum. No máximo, consegui umas namoradas que se impressionavam com as poesias (aliás, minha esposa foi uma delas). Mas, “o gosto é o regalo da vida”, como sempre disse minha mãe. E assim, segui, fazendo bicos e, nas horas de folga, escrevendo.

Mesmo sendo semi-analfabeto, até ali estava sempre com um caderno debaixo do braço e uma caneta no bolso. Era visto diariamente ás sombras das árvores do DER, escrevendo... Quando estava não jogando dominó no bar do Mineiro. E foi por causa da fama de poeta e escritor que o Parafuso quebrou o protocolo naquela noite e me fez a pergunta fatídica:
- Polaco, você redige??

Detestava que me chamassem de “polaco”. Sempre achei ofensivo. Racista. É o mesmo que chamar um negro de “negão”. E eu não respondi à pergunta. Só tempos depois descobri duas coisas: o “O Diário” tinha uma vaga pra redator e o Parafuso havia me indicado pro emprego...

E, sim!, eu “redigia”... Eu adorava redigir!!! Mas aí era tarde pra aquele emprego...

*Jornalista, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR

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