O ovo da serpente
* Por Daniel Santos
Em meses recentes, o presidente da República disse sem qualquer pudor que a leitura é “um hábito chato”, enquanto sua esposa requeria cidadania italiana para, segundo ela, garantir melhor futuro aos seus.
Algo aí não faz sentido. Ou, talvez, por excesso de clareza, incomode e até assuste. Afinal, o país emperra no passado e sonha com o futuro, quando seremos uma potência, por problemas na educação.
Mas o que fazer, se não temos letras? Dá-se um “jeitinho”. No lugar de conhecimento, esperteza. Em vez de ética, estética (já malhou, hoje?), porque bíceps e glúteos rendem mais prestígio que o curriculum vitae!
Sem conhecimento, o ignorante vive em aflitiva velocidade, alheio à noção de longo prazo como se não existisse o amanhã; não, pelo menos, para ele. Faz tudo às pressas, antes que descubram sua incompetência.
Para dar certo, ele conta com a sorte, com a benevolência popular e com a ressalva de leis que, no entanto, vigoram para os demais e consagram, dessa forma, contraditoriamente, um cenário de injustiça.
Essa injustiça é, no Brasil, uma das filhas do liberalismo que acena aos pobres com ilusões de justiça e de revanche contra quem supostamente os oprime, enquanto ricos e remediados posam de magnânimos.
Nesse liberalismo de origem pervertida, demagógica, o esperto vicia-se, aprende a retocar a maquiagem de coitadinho e vive de mão estendida como um humilde para ascender na pirâmide social.
Quando consegue, torna-se vencedor, faz o discurso da ideologia (cacoete recorrente da hipocrisia) e passa a servir de modelo a quem ambiciona igual destino – todos nós, sem quaisquer distinções.
Com seu jeitinho malemolente, cheio de macetes e mutretas, safo que nem ele só e pura ginga tropical, o povo brasileiro não esquenta e vive a véspera de uma metamorfose monstruosa. Ou muito me engano.
O que pensar, por exemplo, do programa “Central das periferias”, apresentado aos domingos pela tevê? A criação popular sem acesso à mídia é seu mote mas, na verdade, apresenta algo bem diferente disso.
No mais das vezes, vemos espertos que intuem a linguagem televisiva e sabem que só aparece (e, conseqüentemente, só existe) quem tem o “shape” exigido pela estética em voga, a do marketing.
Um dos “artistas” disse, por exemplo, que seu grupo só aceita “sarados” – gordos e velhos, nem pensar. Conclui-se, portanto, que criadores populares, como Cartola e Pixinguinha, nunca teriam vez ali!
O que se teme é isso: sem educação, perde-se a identidade, a criação popular não medra e a maior aspiração é dançar conforme a música para ganhar dinheiro. Tudo vendas, tudo esperteza, tudo perversão.
O desprezo pela ética vaza por todos os lados e a pessoa não se dignifica mais pelo que ela é, pelo que conseguiu ser, mas pelo que ela tem: rolex, tecnologia, silicone e outras tantas quinquilharias mais.
Há quem atribua o caráter da nossa gente ao exemplo que vem de cima. Talvez um dia esse tenha sido o único dado a considerar, mas agora também o povo, ou parte dele, já produz suas próprias aberrações.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
* Por Daniel Santos
Em meses recentes, o presidente da República disse sem qualquer pudor que a leitura é “um hábito chato”, enquanto sua esposa requeria cidadania italiana para, segundo ela, garantir melhor futuro aos seus.
Algo aí não faz sentido. Ou, talvez, por excesso de clareza, incomode e até assuste. Afinal, o país emperra no passado e sonha com o futuro, quando seremos uma potência, por problemas na educação.
Mas o que fazer, se não temos letras? Dá-se um “jeitinho”. No lugar de conhecimento, esperteza. Em vez de ética, estética (já malhou, hoje?), porque bíceps e glúteos rendem mais prestígio que o curriculum vitae!
Sem conhecimento, o ignorante vive em aflitiva velocidade, alheio à noção de longo prazo como se não existisse o amanhã; não, pelo menos, para ele. Faz tudo às pressas, antes que descubram sua incompetência.
Para dar certo, ele conta com a sorte, com a benevolência popular e com a ressalva de leis que, no entanto, vigoram para os demais e consagram, dessa forma, contraditoriamente, um cenário de injustiça.
Essa injustiça é, no Brasil, uma das filhas do liberalismo que acena aos pobres com ilusões de justiça e de revanche contra quem supostamente os oprime, enquanto ricos e remediados posam de magnânimos.
Nesse liberalismo de origem pervertida, demagógica, o esperto vicia-se, aprende a retocar a maquiagem de coitadinho e vive de mão estendida como um humilde para ascender na pirâmide social.
Quando consegue, torna-se vencedor, faz o discurso da ideologia (cacoete recorrente da hipocrisia) e passa a servir de modelo a quem ambiciona igual destino – todos nós, sem quaisquer distinções.
Com seu jeitinho malemolente, cheio de macetes e mutretas, safo que nem ele só e pura ginga tropical, o povo brasileiro não esquenta e vive a véspera de uma metamorfose monstruosa. Ou muito me engano.
O que pensar, por exemplo, do programa “Central das periferias”, apresentado aos domingos pela tevê? A criação popular sem acesso à mídia é seu mote mas, na verdade, apresenta algo bem diferente disso.
No mais das vezes, vemos espertos que intuem a linguagem televisiva e sabem que só aparece (e, conseqüentemente, só existe) quem tem o “shape” exigido pela estética em voga, a do marketing.
Um dos “artistas” disse, por exemplo, que seu grupo só aceita “sarados” – gordos e velhos, nem pensar. Conclui-se, portanto, que criadores populares, como Cartola e Pixinguinha, nunca teriam vez ali!
O que se teme é isso: sem educação, perde-se a identidade, a criação popular não medra e a maior aspiração é dançar conforme a música para ganhar dinheiro. Tudo vendas, tudo esperteza, tudo perversão.
O desprezo pela ética vaza por todos os lados e a pessoa não se dignifica mais pelo que ela é, pelo que conseguiu ser, mas pelo que ela tem: rolex, tecnologia, silicone e outras tantas quinquilharias mais.
Há quem atribua o caráter da nossa gente ao exemplo que vem de cima. Talvez um dia esse tenha sido o único dado a considerar, mas agora também o povo, ou parte dele, já produz suas próprias aberrações.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Destaco: "rolex, tecnologia, silicone e outras tantas quinquilharias mais."
ResponderExcluirMais uma vez o questionamento do fato de ajuntar coisas como fonte de felicidade. O que é mesmo que queremos?