O olhar manso
* Por Rubem Alves
“Vamos passear? A tarde está tão bonita!... Poderemos nos deitar debaixo dos eucaliptos, de barriga para o ar, e ficar vendo as folhas brincando com o vento. A sombra é gostosa. Depois poderemos ir ver os marrecos e os gansos, na lagoa. E jogar miolo de pão para os peixinhos. Há também o perfume daquelas árvores, as magnólias. E enfiaremos os pés na água fria...”
A criança levanta o rosto dos seus brinquedos e vê aqueles olhos grandes e mansos que não mandam e nem pedem. Só estão ali dizendo sem dizer: “Eu vejo você. Que coisa gostosa é ver você... O mundo até fica mais bonito. Sem você há tristeza no parque. Eu preciso de você. Vem. Vamos passear.”
A mão também se estende, não para pegar, mas para se oferecer.
A criança ri e se levanta:
“Vamos sim, papai...”
E assim se vão os dois, de mãos dadas, às risadas, encantados com as coisas, esquecidos, ainda que por um momento, de tudo o mais.
Sem passado, sem futuro, só no presente, saboreando-o, saboreando-se como quem saboreia, talvez, um caqui, “cá-aqui”, que ri, lambuzado.
Dois amigos, pai e filho, caminhando, sozinhos.
Mas, quem prestar bem atenção verá que entre eles vai surgindo um mundo. Da mansidão de olhar que não pede e nem manda vai acontecendo uma mágica...
Você se lembra da Cinderela, chorando na cozinha, coberta de borralho, feijão e arroz que a maldade da madrasta misturara com a cinza? E chegou a fada...
Fada: desejo que vira realidade, poder gracioso, atento aos pedidos do coração.., Chegou a fada, e, com as suas palavras mágicas as coisas puseram-se nos seus lugares. Não se espante. É sempre assim: das palavras surge a ordem...
Existe magia também neste olhar manso, que fala sem falar, olhar que parece tão fraco. Ele fala, e as coisas vão-se colocando nos seus lugares. Vão virando música. E as árvores, marrecos, o cintilar da luz, o perfume das magnólias, o grasnar dos gansos, tudo vai cantando o mesmo tema, que se repete e se entrelaça em cânon, o olhar manso do pai...
O olhar manso do pai torna o mundo um lugar amigo.
Do olhar manso nasce um mundo manso onde o corpo pode descansar à sombra das árvores, sem sobressaltos. E rir, sem medo. E amar, olhando para os outros com o mesmo olhar manso...
Sei que parece estranho. Parece que o mundo está lá fora, sólido, pronto, acabado. E estou dizendo que não é bem assim. Que ele nasce e renasce a cada olhar de pai e a cada olhar de filho, que ele surge lentamente neste espaço encantado entre olho e olho...
Quem aprendeu a dizer “papai” aprendeu um mundo! Este é o nome que se encontra no início de todos os universos invocados por nossas nostalgias.
Buscamos este olhar.
Talvez que este seja o nosso maior desejo; perceber, no olhar do outro, a mais sagrada de todas as afirmações possíveis: “Eu desejo que você exista”.
Meu desejo: que o outro me deseje. Saber que a minha existência é a sua oração.
Sei que meus ossos, o líquido vermelho que corre em minhas veias e os meus músculos se formaram na escuridão do ventre materno. Mas o meu corpo, este lugar encantado, muito mais que ossos, sangue e músculos, habitação de medos e esperanças, possibilidade de crueldade e de compaixão, sim, meu corpo nasceu e cresceu no interior dos olhos que o contemplaram e que eu guardei dentro de mim.
Mora eternamente em nós o olhar do outro.
Isto é maravilhoso, se este olhar for manso.
E terrível, se for cruel.
Os olhos — haverá coisa mais fraca e indefesa? — têm o poder para fazer viver e para matar.
Ah! Toda criança conhece o olho mau e o seu medo. Aquele olho duro, pura navalha, que corta a carne... Dizem os poemas sagrados que os olhos, no corpo do homem e da mulher, foram os primeiros lugares onde cresceram as farpas. Antes eram objetos de carinho. Uma carícia ao longe, lá, onde a mão não alcança. Órgão de amor, dentre todos os nossos lugares de prazer. Antes eles diziam: “Eu te vejo e desejo que tu existas”. E desta afirmação mágica surgiu o paraíso: a alegria é uma dádiva do reconhecimento dos olhos que vêem e se comprazem em ver.
Mas, de repente, o corpo sentiu que nos olhos havia um ferrão e veneno. A dor tomou o nome de vergonha. E o corpo se escondeu, por medo, o sorriso virou uma risada/escárnio, o belo ficou ridículo. E mundo se encheu de olhos maus porque eles passaram morar dentro de nós mesmos. “Os olhos são a luz do corpo. Ora se esta luz for trevas, então o teu mundo será tenebroso..”
E é por isto que somos irremediavelmente órfãos.
O pai de olhos mansos e voz tranqüila morreu.
E com ele, o mundo encantado.
Não só órfãos. Também exilados, em terra hostil onde atrás de cada magnólia e de cada eucalipto se esconde um olho mau de um zombador, de um cobrador...
O pai de olhos mansos só existe em nós como uma nostalgia, uma saudade, uma tristeza. A mansidão precisa voltar. E sabemos que ela é a dádiva de um olhar. E é por isto que Jesus nos ensinou a orar, chamando de volta o olhar manso daquele que nos fará sorrir de novo:
“Pai nosso...”
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
* Por Rubem Alves
“Vamos passear? A tarde está tão bonita!... Poderemos nos deitar debaixo dos eucaliptos, de barriga para o ar, e ficar vendo as folhas brincando com o vento. A sombra é gostosa. Depois poderemos ir ver os marrecos e os gansos, na lagoa. E jogar miolo de pão para os peixinhos. Há também o perfume daquelas árvores, as magnólias. E enfiaremos os pés na água fria...”
A criança levanta o rosto dos seus brinquedos e vê aqueles olhos grandes e mansos que não mandam e nem pedem. Só estão ali dizendo sem dizer: “Eu vejo você. Que coisa gostosa é ver você... O mundo até fica mais bonito. Sem você há tristeza no parque. Eu preciso de você. Vem. Vamos passear.”
A mão também se estende, não para pegar, mas para se oferecer.
A criança ri e se levanta:
“Vamos sim, papai...”
E assim se vão os dois, de mãos dadas, às risadas, encantados com as coisas, esquecidos, ainda que por um momento, de tudo o mais.
Sem passado, sem futuro, só no presente, saboreando-o, saboreando-se como quem saboreia, talvez, um caqui, “cá-aqui”, que ri, lambuzado.
Dois amigos, pai e filho, caminhando, sozinhos.
Mas, quem prestar bem atenção verá que entre eles vai surgindo um mundo. Da mansidão de olhar que não pede e nem manda vai acontecendo uma mágica...
Você se lembra da Cinderela, chorando na cozinha, coberta de borralho, feijão e arroz que a maldade da madrasta misturara com a cinza? E chegou a fada...
Fada: desejo que vira realidade, poder gracioso, atento aos pedidos do coração.., Chegou a fada, e, com as suas palavras mágicas as coisas puseram-se nos seus lugares. Não se espante. É sempre assim: das palavras surge a ordem...
Existe magia também neste olhar manso, que fala sem falar, olhar que parece tão fraco. Ele fala, e as coisas vão-se colocando nos seus lugares. Vão virando música. E as árvores, marrecos, o cintilar da luz, o perfume das magnólias, o grasnar dos gansos, tudo vai cantando o mesmo tema, que se repete e se entrelaça em cânon, o olhar manso do pai...
O olhar manso do pai torna o mundo um lugar amigo.
Do olhar manso nasce um mundo manso onde o corpo pode descansar à sombra das árvores, sem sobressaltos. E rir, sem medo. E amar, olhando para os outros com o mesmo olhar manso...
Sei que parece estranho. Parece que o mundo está lá fora, sólido, pronto, acabado. E estou dizendo que não é bem assim. Que ele nasce e renasce a cada olhar de pai e a cada olhar de filho, que ele surge lentamente neste espaço encantado entre olho e olho...
Quem aprendeu a dizer “papai” aprendeu um mundo! Este é o nome que se encontra no início de todos os universos invocados por nossas nostalgias.
Buscamos este olhar.
Talvez que este seja o nosso maior desejo; perceber, no olhar do outro, a mais sagrada de todas as afirmações possíveis: “Eu desejo que você exista”.
Meu desejo: que o outro me deseje. Saber que a minha existência é a sua oração.
Sei que meus ossos, o líquido vermelho que corre em minhas veias e os meus músculos se formaram na escuridão do ventre materno. Mas o meu corpo, este lugar encantado, muito mais que ossos, sangue e músculos, habitação de medos e esperanças, possibilidade de crueldade e de compaixão, sim, meu corpo nasceu e cresceu no interior dos olhos que o contemplaram e que eu guardei dentro de mim.
Mora eternamente em nós o olhar do outro.
Isto é maravilhoso, se este olhar for manso.
E terrível, se for cruel.
Os olhos — haverá coisa mais fraca e indefesa? — têm o poder para fazer viver e para matar.
Ah! Toda criança conhece o olho mau e o seu medo. Aquele olho duro, pura navalha, que corta a carne... Dizem os poemas sagrados que os olhos, no corpo do homem e da mulher, foram os primeiros lugares onde cresceram as farpas. Antes eram objetos de carinho. Uma carícia ao longe, lá, onde a mão não alcança. Órgão de amor, dentre todos os nossos lugares de prazer. Antes eles diziam: “Eu te vejo e desejo que tu existas”. E desta afirmação mágica surgiu o paraíso: a alegria é uma dádiva do reconhecimento dos olhos que vêem e se comprazem em ver.
Mas, de repente, o corpo sentiu que nos olhos havia um ferrão e veneno. A dor tomou o nome de vergonha. E o corpo se escondeu, por medo, o sorriso virou uma risada/escárnio, o belo ficou ridículo. E mundo se encheu de olhos maus porque eles passaram morar dentro de nós mesmos. “Os olhos são a luz do corpo. Ora se esta luz for trevas, então o teu mundo será tenebroso..”
E é por isto que somos irremediavelmente órfãos.
O pai de olhos mansos e voz tranqüila morreu.
E com ele, o mundo encantado.
Não só órfãos. Também exilados, em terra hostil onde atrás de cada magnólia e de cada eucalipto se esconde um olho mau de um zombador, de um cobrador...
O pai de olhos mansos só existe em nós como uma nostalgia, uma saudade, uma tristeza. A mansidão precisa voltar. E sabemos que ela é a dádiva de um olhar. E é por isto que Jesus nos ensinou a orar, chamando de volta o olhar manso daquele que nos fará sorrir de novo:
“Pai nosso...”
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
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