segunda-feira, 4 de julho de 2011



O mago da palavra

O
poeta, à sua revelia, às vezes faz o papel de profeta. Prevê fatos, acontecimentos positivos e negativos e, em casos extremos, a própria morte. Leiam, por exemplo, estes versos, de Mário Chamie, do poema “O mago” : “O mago/comia as ervas/comia os frutos/e explicava/o caminho/do rio sem desvio/No seu curso./em decúbito/no púlpito/o mago morreu/de mal súbito”. Considero mago, no caso, o próprio poeta. Mago das palavras, que sabia expressar, como ninguém, os sentimentos mais profundos e recônditos que lhe iam na alma (e que vão na de cada um de nós).

E por que me refiro a ele no passado? Porque, pela contingência natural da vida, o poeta Mário Chamie, nascido em Cajobi, em 1º de abril de 1933, acaba de nos deixar, vítima de um câncer que o debilitou e findou por suprimir-lhe a vida. Todavia, seu legado, tanto administrativo, quanto, principalmente, poético, permanece a marcar sua bem-sucedida passagem pelo mundo.

Como secretário municipal de Cultura de São Paulo, por exemplo, tem, a seu crédito, obras marcantes e duradouras, que refletem, sobretudo, lucidez e visão de futuro. Como se vê, não exagero ao considerá-lo, além de poeta, profeta. Criou, entre outras entidades, a Pinacoteca Municipal de São Paulo. Não se contentou só com isso. Nunca considerava suficiente o que fazia em favor da difusão da arte e, por extensão, da cultura. Encabeçou, pois, a criação do Museu da Cidade de São Paulo. Ainda considerava pouco. Criou, finalmente, o Centro Cultural de São Paulo. E só mais não fez, porque o tempo e as circunstâncias não o permitiram.

Legado tão expressivo quanto o que deixou como secretário, também o fez (e provavelmente muito mais até) como poeta, de linguagem refinada e estilo coloquial. É um dos meus preferidos na literatura brasileira. Merece, como ninguém, a designação que lhe dei – e não é de agora, mas de décadas, quando tomei contato pela primeira vez com sua poesia, na qual vislumbrava muito de magia – de “mago da palavra”.

Mário Chamie deixou doze livros publicados, pela ordem: “Espaço inaugural” (1955), “O lugar” (1957), “Os rodízios” (1958), “Lavra lavra” (1962), “Now tomorrow mau” (1963), “Indústria” (1967), “Planoplenário” (1974), “Objeto selvagem” (1977), “Sábado na hora da escuta” (1978), “A quinta parede” (1986), “A natureza da coisa” (1993) e “Caravana contrária” (1998).

De um poeta tão prolífico e produtivo, seria lícito esperar que conquistasse muitas premiações literárias. E Mário Chamie conquistou, pelo menos seis, e das mais relevantes do País, a maioria com livros de poesia. A exceção foi “Linguagem virtual”, em que demonstrou imenso talento de ensaísta e com o qual ganhou dois prêmios: o Prêmio Governador do Estado de São Paulo, em 1974 e, dois anos depois, em 1976, o prêmio de Ensaio da Associação Paulista dos Críticos de Arte.

Ganhou, também, o cobiçado Jabuti, na categoria de poesia. E, quem conhece sua obra a fundo sabe que merecia muitos, muitíssimos mais, por sua originalidade, criatividade e capacidade de comunicação. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo, foi convidado a ministrar aulas e proferir palestras em renomados centros universitários do exterior, como em Harvard, por exemplo.

Sem atribuir papel menor a essas atividades (e nem cometeria tamanha heresia), concentro, por razões óbvias, minha atenção em sua atuação literária, quer como poeta, quer como ensaísta ou crítico dos mais cultos, competentes e refinados. E quando se entra nesse campo, é forçoso citar o caráter inovador da sua obra, notadamente a poética, como dissidente do concretismo e fundador da poesia-práxis. Além dos livros que citei, publicou, entre artigos, crônicas etc., mais de 140 trabalhos literários, boa parte dos quais traduzida para 57 idiomas. Ressalto que muitos dos seus dados biográficos extraí da enciclopédia eletrônica Wikipédia, em cuja exatidão confio.

Como se vê, minha admiração e respeito pelo escritor Mário Chamie não é exclusiva, mas compartilhada pelos mais cultos e renomados colegas de letras e, sobretudo, leitores. O sociólogo Gilberto Freyre, por exemplo, assim se referiu ao poeta paulista: “A criatividade se apresenta tão dele tão não somente dele que é como se palavras, ou relações ent6re palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas”. Como se vê, era um mago que, em vez de tirar coelhos da cartola, tirava beleza, grandeza e transcendência.

Como sempre faço ao me referir a poetas, pincei, em um dos seus livros, este poema, que reproduzo abaixo, embora ao procurar fazer a seleção, foram tantos os que me chamaram a atenção, a ponto de me deixar confuso. Dada minha hesitação entre centenas deles, sorteei o abaixo, escrevendo os títulos em pedaços de papel e deixando que o acaso decidisse qual partilharia com vocês. Quis a sorte que fosse este:

Abertura

“No espaço do campo, passa o homem e sua miragem,
no espaço da cidade, dorme o homem em sua passagem.
No espaço da consciência, gera o vírus a sua voragem.
Por todos esses espaços, de surda força indomável,
passa o espaço da palavra com sua selva sem margem.
Na selva dessa paisagem, no centro de sua arena,
age a força do poema, meu objeto selvagem”.


Como caracterizar um poeta assim? Como classificar um prestidigitador de palavras que as manipula com tamanha naturalidade e elegância e que consegue extrair o máximo de significados delas? Pode até ser que a designação que me veio à mente não seja a adequada, por ser aquém do seu talento. Para mim, todavia, Mário Chamie foi e será sempre o mago. O mago das palavras.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. De fato o nome "Abertura" vem a calhar, pois dá ao leitor uma amplidão de possibilidasdes de interpretação, culminando em dar alegoria ao poema chamando-o de "selvagem". O poeta escolhe palavras, mas não as doma. Entrega ao leitor, que faz dela o que bem entende, ou não entende. Meu caso, mas nem sempre.

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