Ecos da senzala
* Por Euclides Farias
Filho de escravos, “seu” Raimundo Figueiredo era aos 70 anos vigia numa fábrica de estanho fronteiriça à sede social dos chauffeurs, na Macapá dos anos 1960. Todo dia, cinco da tarde, violão debaixo do braço, passava rumo à senzala moderna, em troca de ordinário ordenado. O violão, companheiro de vigília noturna.
Era homem de poucas palavras, sempre pensadas e medidas. Expressava-se, aí sim intensamente, pelo violão. Lembro que era um violão de pinho tosco que se cobria de vernizes desgastados, modesto como o violonista.
Raimundo Figueiredo devia ter muito apreço por Dilermando Reis. De seus dedilhados ouvi, pela primeira vez, clássicos eternizados por Dilermando, como “Marcha do Marinheiro” e “Sons de Carrilhões”, músicas sem letras que agora posso, tanto tempo depois, render com segurança tributo das respectivas autorias a Américo Jacomino “Canhoto” e a João Pernambuco.
A sala da velha casa, que passou a freqüentar para aulas de violão ao meu irmão mais velho, ganhava a sonoridade da obra dilermandiana.
Sem vocação para a música, comecei a investigar, fora das academias, a história da música popular brasileira e dela permaneço renitente aprendiz. Tomei gosto por algumas polêmicas que a envolviam. Umas são bem conhecidas, como a que contrapôs Noel Rosa e Wilson Batista.
Mas, por sua utilidade à crônica, detenho-me noutra. Primeiro samba gravado no Brasil de 1917, “Pelo Telefone”, que Donga apressou-se a registrar em cartório como obra de sua exclusiva verve, acabou virando caso de polícia. À época, o jornalista Mauro de Almeida ganhou uma batalha na Justiça para ser reconhecido co-autor.
Na contramão da história oficial, sempre sou tentado a supor que, a rigor, por herança cultural, a música deveria pertencer ao velho Raimundo Figueiredo ou a qualquer músico com ascendência afro, cujas raízes musicais encravaram-se no ambiente carioca daquele Brasil pós-Lei Áurea.
É que, flagrante plágio, “Pelo telefone” era música recolhida, de domínio público, ecos da senzala que se ouviam no Rio antigo, nos refúgios de negros libertos, nas casas das muitas “tias”, como Ciata.
“O chefe da folia/Pelo telefone/Manda me avisar/Que com alegria/Não se questione/Para se brincar”, cantavam, originalmente, os negros. “Pelo telefone/O chefe da Polícia/Manda me avisar/Que na Carioca/Tem uma roleta/Para se jogar”, adaptaram, espertamente.
No Brasil musical de hoje, dos trios elétricos e do que Nelson Motta chama com rara inspiração de música prapular brasileira, o violão de verniz surrado de “seu” Raimundo Figueiredo faz uma falta danada, à vida e à beleza da arte de magnetizar com acordes e sem palavras.
• Jornalista, com 30 anos de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
* Por Euclides Farias
Filho de escravos, “seu” Raimundo Figueiredo era aos 70 anos vigia numa fábrica de estanho fronteiriça à sede social dos chauffeurs, na Macapá dos anos 1960. Todo dia, cinco da tarde, violão debaixo do braço, passava rumo à senzala moderna, em troca de ordinário ordenado. O violão, companheiro de vigília noturna.
Era homem de poucas palavras, sempre pensadas e medidas. Expressava-se, aí sim intensamente, pelo violão. Lembro que era um violão de pinho tosco que se cobria de vernizes desgastados, modesto como o violonista.
Raimundo Figueiredo devia ter muito apreço por Dilermando Reis. De seus dedilhados ouvi, pela primeira vez, clássicos eternizados por Dilermando, como “Marcha do Marinheiro” e “Sons de Carrilhões”, músicas sem letras que agora posso, tanto tempo depois, render com segurança tributo das respectivas autorias a Américo Jacomino “Canhoto” e a João Pernambuco.
A sala da velha casa, que passou a freqüentar para aulas de violão ao meu irmão mais velho, ganhava a sonoridade da obra dilermandiana.
Sem vocação para a música, comecei a investigar, fora das academias, a história da música popular brasileira e dela permaneço renitente aprendiz. Tomei gosto por algumas polêmicas que a envolviam. Umas são bem conhecidas, como a que contrapôs Noel Rosa e Wilson Batista.
Mas, por sua utilidade à crônica, detenho-me noutra. Primeiro samba gravado no Brasil de 1917, “Pelo Telefone”, que Donga apressou-se a registrar em cartório como obra de sua exclusiva verve, acabou virando caso de polícia. À época, o jornalista Mauro de Almeida ganhou uma batalha na Justiça para ser reconhecido co-autor.
Na contramão da história oficial, sempre sou tentado a supor que, a rigor, por herança cultural, a música deveria pertencer ao velho Raimundo Figueiredo ou a qualquer músico com ascendência afro, cujas raízes musicais encravaram-se no ambiente carioca daquele Brasil pós-Lei Áurea.
É que, flagrante plágio, “Pelo telefone” era música recolhida, de domínio público, ecos da senzala que se ouviam no Rio antigo, nos refúgios de negros libertos, nas casas das muitas “tias”, como Ciata.
“O chefe da folia/Pelo telefone/Manda me avisar/Que com alegria/Não se questione/Para se brincar”, cantavam, originalmente, os negros. “Pelo telefone/O chefe da Polícia/Manda me avisar/Que na Carioca/Tem uma roleta/Para se jogar”, adaptaram, espertamente.
No Brasil musical de hoje, dos trios elétricos e do que Nelson Motta chama com rara inspiração de música prapular brasileira, o violão de verniz surrado de “seu” Raimundo Figueiredo faz uma falta danada, à vida e à beleza da arte de magnetizar com acordes e sem palavras.
• Jornalista, com 30 anos de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
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